A grande lapa

Perscruto a memória, mas não me lembro, depois de tantos anos de hiking, trekking e camping, de ter caminhado completamente sozinho por horas, para depois, sempre sozinho, armar a barraca e passar a noite no mato. Enquanto desço lentamente o córrego, amparado por dois bastões e carregando nas costas a mochila com 13 quilos de carga, vou rememorando as últimas decisões que precederam essa caminhada solo. "Leve a bota", alertara o meu irmão, completando: "Nessas condições, a bota é um EPI". E a minha cunhada perguntara, à guisa de sugestão: "Você vai acampar aqui perto, não?", referindo-se às proximidades da agradável e rústica casa que ambos mantêm na região da Serra do Cipó.

Descendo a curta trilha que leva da casa ao córrego, iniciei a caminhada abrindo mão das duas advertências. No último momento deixei a bota na varanda. Seria um peso a mais e um incômodo, a se encharcar continuamente, durante a caminhada fluvial que planejara. E, ainda que tenha respondido afirmativamente à sugestão da cunhada, já de antemão sabia que desceria o córrego por horas até encontrar um lugar de pouso. Não ficaria próximo da casa.

Já nos primeiros cem metros me dei conta de que o "pisante", como outrora chamavam os trekkers às inúmeras modalidades de calçados de caminhada, não era nada adequado. As sandálias, feitas apenas de um pedaço de pneu com quatro alças de amarração, deixavam entrar pedrinhas a cada passo que dava na água. E nesta região serrana o leito dos corpos de água é coalhado de pedras de todas as formas e tamanhos. Pois bem. Essas pedrinhas se alojavam entre o pé e a sandália, obrigando-me a ridiculamente estancar o passo inúmeras vezes para retirá-las. Aos poucos fui percebendo que se ampliasse o passo no sentido vertical, retirando inteiramente o pé da água e sacudindo-o, fazia com que as pedrinhas caíssem, reduzindo o desconforto. Mas obviamente esta canhestra passada artificial não era uma solução definitiva. Volta e meia parava e, com meio corpo dentro da água, apoiado num dos bastões, curvava-me para tirar uma pedra insuportável do pé.


Na estação seca o córrego flui como uma faixa estreita de água, que muitas vezes é possível se cruzar com uma passada. Ladeando-o veem-se afloramentos rochosos, pedras escarpadas e pontudas, de cor cinza. Um pouco abaixo aparecem faixas de areia grossa, cascalhosa, formando algo como praias fluviais. A vegetação de cerrado começa logo após essa paisagem rochosa e arenosa, representada por uma mata de árvores na sua maioria baixas e finas, entre as quais cresce profusa vegetação rasteira. Mas volta e meia um espécime de grande porte se destaca. É uma dessas grandes árvores que vejo ao chegar a uma singular curva do córrego. Essa curva forma um perfeito "L" apontado para a esquerda, no sentido de quem desce a favor da correnteza. Logo abaixo o movimento das águas sobre o leito pedregoso do córrego forma uma agradável marola.

Continuo a descer, apoiando-me firmemente nos indispensáveis bastões de caminhada. Em alguns pontos é possível deixar o leito do córrego e enveredar pela vegetação. Mas logo me dou conta dos inúmeros espinheiros que se agarram às minhas pernas nuas e à mochila que carrego nas costas. A capa da barraca sofre um rasgo ao enfrentar um desses galhos espinhosos. Levo um facão curto, que o meu irmão me emprestou, mas hesito em utilizá-lo. Não me parece bem agredir uma planta que apenas reage à minha intrusão. Cada uma delas é, como eu, um indivíduo vivo.

Em alguns trechos as águas se avolumam, obrigando-me a me deslocar com meio corpo submerso. "Nesta estação é possível se caminhar sempre em terreno seco, fora do córrego", asseverara o meu irmão. Mas já antes de partir eu sabia que não seria assim. Na maior parte dos trechos percorridos caminha-se realmente dentro da água; a mata lateral é de difícil penetração, com toda sorte de vegetação a barrar a passagem. Ademais, as rochas escarpadas laterais se alinham verticalmente, formando, em vários trechos, pequenos despenhadeiros, sobre os quais seria temerário caminhar.

Depois de uma hora de atividade, com apenas 1,6 quilômetro percorrido nesta caminhada difícil sobre um pedregoso leito de córrego, zigue-zagueando entre rochas escarpadas, chego a uma enorme lapa, a se projetar em sentido oblíquo sobre o córrego, que flui na sua base. Esse imenso e singular afloramento rochoso avança sobre o corpo de água pela sua margem esquerda; à direita o rebaixamento das águas deixa aparecer uma agradável praiazinha de cascalho e areia. Estaco perplexo com a magnificência dessa formação natural. Pouso a mochila na areia e me quedo por algum tempo a admirá-la. A lapa é muito larga e alta. Teria sido instrutivo estimar a sua largura percorrendo-a de ponta a ponta, mas não o fiz. De toda forma, seguramente tem mais de 50 ou 60 passos de largura, o que daria mais de 50 metros. A altura, por seu turno, corresponde talvez a uma casa de dois ou três andares, entre 6 e 10 metros. Como está numa posição oblíqua, formando um ângulo de 45 graus com o solo, as águas do córrego penetram esse vértice, formando uma massa escura de água, que não recebe a luz natural. "Mergulhando-se nesse vértice talvez se descubram pequenas reentrâncias submersas", conjeturo.

Reluto em deixar a grande lapa. A paisagem quase extra-planetária, o isolamento, a percepção de estar em um complexo natural de milhares de anos de idade me fascinam. Por fim, obrigo-me a pegar a mochila e prosseguir.

Cruzo uma pequena barragem de pedras que algum proprietário construiu para represar a água. Há um vertedouro aberto, deixando fluir a água. Passo a passo o córrego se fecha. As áreas mais abertas, ladeadas pelas rochas escarpadas, ficaram para trás. À medida que a altitude diminui, as margens se tornam mais e mais terrosas, repletas de vegetação. Em alguns pontos a passagem é inteiramente interrompida por troncos enormes, repletos de galharia, resultantes da queda natural de grandes árvores. Como o fluxo das águas é mais reduzido, forma-se, em alguns pontos do córrego, uma espécie de desagradável nata sobre a superfície de água semi-parada.

Deixo o córrego e subo até uma área de capim e pequenas árvores na margem esquerda. Caminhei apenas duas horas e meia e 2,4 quilômetros, mas sinto-me cansado e levemente tonto. As pernas estão geladas, o short de tecido sintético e a parte inferior da camiseta de mangas compridas estão completamente molhados. Mas constato aliviado que a carga da mochila não se molhou. Preventivamente, embalara tudo em sacolas plásticas, pois temia que um escorregão me jogasse inteiramente dentro da água, molhando toda a carga. Mas isso felizmente não ocorreu.

Não tenho um plano definido, nenhuma meta a cumprir. Posso retornar daqui, cancelando a viagem, ou seguir e acampar em algum lugar desconhecido córrego abaixo. Não tenho tampouco um prazo estabelecido para os intervalos de descanso. Portanto, inteiramente livre, depois de me aquecer no sol quente da campina, desbasto uma área retangular com o facão, estendo o colchão de ar, encho-o com a bomba e deito-me. Durmo um pouco. Depois faço uma rápida refeição de bananas e granola, ando um pouco pela área e faço um pequeno curativo no dedo indicador direito, que ferira ao batê-lo contra um tronco. "Felizmente trouxe o frasco de própolis e alguns band-aids", penso aliviado.

Rearranjo a mochila e prossigo pelo córrego. Mais ou menos na altura do quilômetro 2,7, um regato verte água barrenta na margem direita do córrego. A cor do corpo de água denuncia a chuva recente na região percorrida por esse pequeno afluente. Com essa inesperada contribuição, a água do córrego principal, que até aqui era cristalina, torna-se muito turva e pouco convidativa ao consumo. Carrego comigo a excelente garrafa filtrante de água, mas mesmo assim não me animo a ingerir essa água terrosa. Paro um pouco numa praiazinha na margem esquerda; penso no que fazer. São duas horas da tarde e daqui a pouco será o momento de escolher um lugar para acampar e armar a barraca. O percurso pelo córrego é cada vez menos interessante. Os troncos caídos e a galharia que a chuva derrubou sobre as águas formam uma rede praticamente impossível de se transpor. O caminhante é obrigado a frequentemente enveredar pelas margens, repletas de espinheiros e vegetação fechada.

Decido, então, retornar até algum ponto córrego acima, na direção da grande lapa. Ela mesma seria um bom lugar de acampamento, não fosse a extensa área de sombra que forma, a contribuir para esfriar ainda mais o ambiente neste inverno serrano.

Acampo algumas dezenas de metros depois de transpor novamente a barragem de pedra. É uma agradável área de rochas lisas e planas, que formam estreitos platôs onde se pode armar uma barraca. A barraquinha que carrego é na realidade apenas o toldo plástico e algumas varetas. Quando encho novamente o colchão de ar e abrigo-o no interior, ele preenche mais da metade da superfície interna da barraca. Não mais que duas pessoas caberiam nesse recinto, que teoricamente abrigaria até três ocupantes. Preocupa-me um pouco a ausência da lona externa, que se perdera em algum momento do passado de utilização desse equipamento emprestado. Por outro lado, constato que os reparos que fizera nas varetas, antes de partir, funcionaram a contento.

Abrigo toda a carga no interior da barraca, evitando deixar algo do lado externo, o que poderia atrair olhares indesejados. Tiro a roupa molhada e visto as excelentes roupas sintéticas do tipo "segunda pele". O corpo é imediatamente aquecido. Faço uma deliciosa refeição de farofa vegana, ovo, batata e chocolate.

Assim que cheguei a esse lugar, aproveitei a luz natural ainda restante para apanhar no chão alguns troncos e galhos que poderiam servir como lenha para uma fogueirinha. No passado de camping o fogo era essencial no preparo das refeições e no aquecimento durante as noites frias. Naquela época, em algumas ocasiões, a fogueira era deixada a arder durante toda a noite, uma tentativa de aquecer o frio interior das barracas. 

Mas agora os hábitos dos campistas mudaram. Fazer fogo, seja pelo risco de incêndio na mata, seja pelo consumo de madeira nativa que, ainda que morta, é parte do ecossistema, tornou-se uma prática obsoleta e desencorajada. E, ademais, o preparo prévio das refeições e equipamentos eficientes contra o frio dispensam inteiramente o fogo, que assim se torna apenas uma diversão.

A natureza pareceu confirmar essas novas tendências. Pois, por mais que me esforçasse, não consegui acender a fogueira. A madeira úmida da beira do córrego, numa região em que chovera há pouco tempo, não se deixava queimar. Por fim, desisti da fogueira e contentei-me em sentar nas pedras e usufruir do lugar.

Às seis horas da tarde a luz natural já se fora. O que fazer agora? Não trouxera um livro e, mesmo que o tivesse feito, não me animaria a consumir a carga das pilhas da lanterna com a leitura. O celular, completamente sem sinal de telefonia ou de internet, reduzira-se à função única de câmera fotográfica. Ouvir música seria também temerário, pois não queria consumir a bateria do aparelho.

Entrei então na barraca, enfiei-me no saco de dormir e deitei-me sobre o excelente colchão de ar. Transportar essa carga adicional de 1,3 quilos valera a pena. O colchão me deixava a confortáveis 20 centímetros do chão, deitado sobre uma camada de ar plana e macia. (É na realidade uma solução melhor do que os convencionais isolantes térmicos que os trekkers utilizam). O teto inclinado da barraca passava a apenas alguns centímetros da minha cabeça e podia sentir com a mão a superfície úmida dessa cobertura plástica, totalmente exposta ao ambiente externo. Mas nada disso foi um problema. O saco de dormir, que suporta exagerados 15 graus negativos de temperatura, constituía uma valiosa proteção contra frio e umidade. "Teria sido quase possível dormir no saco ao relento, sem a barraca", pensei.

Embalado pelo ruído incessante das águas do córrego, dormi até as quatro horas da manhã. Acordei na madrugada fria e úmida, deixei a barraca para as necessidades fisiológicas, cobri-as com uma pedra e voltei a dormir.

Percorria uma região rural, ocupada por sitiantes e pequenos fazendeiros. Havia avistado algum gado ao longe, pastando nas campinas que se iniciam depois de transposta a estreita faixa de mata ciliar do córrego. Às sete horas da manhã comecei a ouvir o ruído de uma roçadeira. Parecia próximo, mas sabia que estava mais afastado, na campina ao longe. Vez ou outra se ouvia o ruído de uma motocicleta. 

Inicialmente pensava ficar por ali até o sol estar alto no horizonte, já no meio da manhã. Mas os constantes ruídos humanos me demoveram disso. O país é cada vez mais incerto quanto à segurança pública e definitivamente não queria ser surpreendido por algum preposto de um proprietário local. Desarmei então a barraca, reacondicionei tudo na mochila e iniciei a caminhada do segundo dia.

Em algumas horas estava de novo sob a grande lapa. Demorei-me ali, explorando novos ângulos fotográficos, permitindo-me mesmo alguns ensaios, a aproveitar as inúmeras possibilidades abertas pelo espelho d'água, pelos seus reflexos na rocha, pelas áreas de sombra. Esse rochedo tornara-se um marco e um símbolo para este caminhante solitário na agradável paisagem da região conhecida como "Serra do Cipó".

Continuei a subir pelo córrego e por volta do meio dia estava de novo na casa do meu irmão. Sentia-me feliz por ter conhecido um pouco mais desse admirável corpo de água. Há cerca de 25 anos havia feito, acompanhado do mesmo irmão, do meu filho, então com 10 anos de idade, e de alguns amigos, o caminho inverso. Subíramos o córrego, varando a montanha em direção às suas nascentes. Meu irmão, então um jovem de 30 anos de idade, levava parte da carga numa inusitada sacola de lona dos correios. Passamos uma noite acampados na beira do córrego, no topo da montanha, refugiados do vento sob as árvores. Lá do alto identificamos as luzes de Santana do Riacho, a brilharem fracas na noite escura.

Vinte e cinco anos, que para mim pareciam uma eternidade, nada haviam significado na vida desse córrego e das formações naturais que o ladeiam. Felizmente essa isolada região da Serra do Cipó fora preservada da pressão turística e mantivera-se como ainda está hoje: uma área de cerrado com alguns poucos sitiantes e algumas intervenções humanas indesejáveis no ecossistema (barragens, fossas negras). Mas, feitas as contas, esse admirável corpo de água continua vivo a percorrer o cerrado. E, sobretudo, a fluir calmamente sob a grande lapa.

***

O que levei: 

. uma mochila de 34 litros

. uma barraca de camping. A barraca estava sem a lona externa e com as varetas em mau estado, mas funcionou muito bem.

. um saco de dormir resistente a até -15oC. Obviamente não era necessária tanta proteção contra o frio, mas era o equipamento de que eu dispunha.

. um colchão de ar tamanho solteiro. Muito bom!

. uma bomba simples para encher o colchão de ar.

. uma camiseta de mangas compridas, uma camiseta de mangas curtas, um short, uma cueca, uma sunga, uma meia grossa (não foi utilizada), uma sandália de pneu simples, uma calça e uma camiseta, ambas tipo "segunda pele", um gorro, um boné com aba na nuca e fator de proteção solar 12.

. dois bastões de caminhada

. uma caixinha de primeiros socorros, inclusive própolis e faixa para eventuais contusões.

. um canivete

. uma caixa de fósforos e um mecanismo "start fire" de emergência.

. uma lanterna de testa com pilhas recarregáveis.

. um celular.

. um carregador portátil de celular.

. repelente contra insetos.

. um pedaço de sabonete.

. uma toalha de trekking.

. uma garrafa de água com filtro interno.

. escova e pasta de dentes.

. quatro elásticos esticadores com ganchos.

. 1/5 de rolo de papel higiênico.

. comestíveis: um pão integral grande, granola, farofa vegana, 3 batatas previamente fervidas em água, 4 ovos cozidos, meia barra de chocolate 70%, um limão, 10 bananas. Estimo que essa carga de comestíveis seria suficiente para um período de viagem três vezes maior.














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