Sete dias a pé pelos Alpes

Os Alpes: uma região europeia de picos nevados, estações de ski, vilas luxuosas e turismo internacional. Sim, os Alpes são tudo isso. Mas você sabia que é possível percorrer a maior cordilheira da Europa Ocidental viajando a pé, carregando mochila e dormindo em barraca ou abrigos? Acompanhe-me ao longo de uma viagem a pé de sete dias pelas montanhas alpinas.

A “Grande Travessia dos Alpes”, ou GR5, é uma rota de caminhada de pouco mais de 600 quilômetros que percorre boa parte da Cordilheira dos Alpes. Inicia-se no Lago Léman, o maior lago da Europa Ocidental, localizado entre a França e a Suíça. E termina no Mar Mediterrâneo, na cidade francesa de Nice. Trata-se de uma das rotas de caminhada mais conhecidas da Europa, muito frequentada pelos franceses.



A GR5 percorre uma grande diversidade de paisagens: maciços rochosos, montanhas verdejantes, picos nevados, lagos, glaciares, florestas, áreas agropastoris e pequenas vilas pesqueiras. Três grandes parques e numerosas reservas naturais estão no percurso.

Didaticamente, pode-se dividir a rota em quatro partes, sendo a primeira a mais caracteristicamente alpina, pois leva do Lago Léman às altas montanhas, de onde se pode avistar o Mont Blanc, o ponto mais alto da Europa Ocidental (4.810 metros).

O percurso total a pé leva entre 30 e 45 dias de caminhada, a depender da disposição do caminhante e do clima. O viajante pode-se valer dos rústicos abrigos (refuges) instalados ao longo do caminho; do acampamento em áreas delimitadas, próximas desses abrigos; ou mesmo do camping selvagem, em áreas naturais livres. Nos abrigos pernoita-se em beliches em grandes dormitórios (num deles contei 23 camas), usam-se banheiros coletivos e come-se em grandes mesas comunitárias.



Em alguns refúgios, em razão da falta de água, o banho pode ser improvisado num tanque e bacia.





Aviso afixado no banheiro coletivo de um dos refúgios



Caminhei por sete dias, na última semana de julho de 2021, entre Saint-Gigolph, nas margens do Lago Léman, e Chamonix, a emblemática vila que é o centro da região do Mont Blanc. Trata-se da primeira etapa do percurso total da GR5, uma empreitada que, como ouvi de uma exausta caminhante francesa num dos dias de travessia, pode ser resumida na expressão “montagne dèrriere montagne” (“montanha atrás de montanha”). Foram 101 quilômetros lineares percorridos em variações de altitude que chegam a 1.710 metros de desnível positivo (subida) e 2.069 metros de desnível negativo (descida). A maior altitude a que cheguei foi o topo da montanha conhecida como Le Brévent, que está a 2.525 metros.

Essa primeira parte da GR5 é também uma zona fronteiriça entre a França e a Suíça. A rota cruza várias vezes uma fronteira que é legalmente definida, mas fisicamente inexistente. Em alguns dias pernoitei em refuges franceses; em outros, em abrigos suíços, mas a única diferença entre eles eram as bandeiras alçadas nos tetos dos estabelecimentos.

Entre as grandes viagens a pé que já tive a oportunidade de realizar (Cordilheira do Himalaia, Cordilheira dos Andes, Estrada Real...), esta está entre as mais marcantes. Acompanhe a seguir o relato do dia mais desafiador dessa inesquecível experiência de caminhada.


Uma aventura radical


Tudo começou com uma reserva equivocada feita no sistema on line de abrigos nos Alpes. A maioria dos estabelecimentos reserva hospedagem diretamente por telefone ou e-mail, sem necessidade de pagamento antecipado. Mas alguns, como o Refuge Moëde Anterne, utilizam o sistema on line de reservas. E, com um tempo curto de planejamento da viagem a pé pelos Alpes, acabei por me equivocar no agendamento pela Internet, reservando transporte de bagagem – serviço que é utilizado por aqueles que querem caminhar sem o ônus da carga da mochila, o que não era o meu caso – e não a pernoite no abrigo. Quando descobri o equívoco já era tarde. Esse abrigo, que ocupa uma posição estratégica na rota da GR5, entre Salvagny e Les Houches/Chamonix, já estava lotado no dia em que eu necessitava. Iniciei então, ao longo de dois ou três dias, uma série de tentativas de solução alternativa do problema. Cheguei a reservar outros abrigos, mas todos estavam fora da rota da GR5 e implicavam perder o que se poderia chamar o ponto de vista conceitual da caminhada.

Por fim, na noite do dia 24 de julho, quando já estava no abrigo de Salvagny, a solução apareceu. Um dos abrigos da rota oficial, Bellachat, liberara uma vaga para o dormitório coletivo e gentilmente avisaram-me por SMS disso. O problema é que esse abrigo fica a aproximadamente 30 quilômetros de caminhada pelas montanhas a partir de Salvagny. Eu percorreria os dois mais longos e mais difíceis trechos da primeira etapa da GR5, fazendo em um só dia o que o roteiro prevê em dois, ou, para ser mais preciso, em um dia e três quartos de dia. As variações de altitude eram as mais desafiadoras dessa etapa: 1.587 metros de desnível positivo e 422 metros de desnível negativo no primeiro dia e 1.082 / 2.069 metros no segundo.

Consultei o casal alemão de caminhantes que conhecera já no segundo dia da minha jornada. Eles desaconselharam inteiramente a tentativa. “Eu não faria”, afirmou Bögi. Franzi consultou o mapa, olhou-me surpresa e exclamou: “Mas esse abrigo de Bellachat já está quase em Les Houches, a distância e as altitudes são enormes até lá!”. Pelos cálculos da amiga, sempre muito atenta aos mapas e à topografia do percurso, eu levaria onze horas a caminhar por montanhas com enormes desníveis de altitude.

Além do desafio físico, eu faria isso sozinho e sem dois recursos essenciais: uma barraca de camping e um sleeping bag resistente a baixas temperaturas. Se tivesse esses dois equipamentos, poderia passar a noite no caminho, caso não conseguisse realizar o intento. Sem eles, tornava-se imperativo chegar a Bellachat no mesmo dia, pois seria impossível resistir à noite gelada dos Alpes.

Tomei a decisão. Deixei Salvagny às 6h45 do dia 25 de julho, quando a vila mal acordara. Levava uma provisão de alimentos, que incluíam o que já vinha carregando e alguns alimentos novos, gentilmente cedidos pelo proprietário do Gite Auberge de Salvagny. O dia estava nublado, mas sem chuva e, à medida que eu avançava e ganhava altitude, mais frio. Depois de uma hora de caminhada, começaram a aparecer pessoas a correr pelas trilhas, vestidas com sumárias roupas desportivas. Depois viria a saber que naquele domingo ocorriam duas maratonas de corrida na trilha entre Salvagny e o abrigo de Moëde Anterne.

Às 10h30 cheguei ao Refuge Alfred Wills, ou d'Anterne, e lamentei que uma confusão de nomes me tivesse levado, algum tempo antes, a supor que estava próximo de Moëde Anterne. Esse segundo refúgio, a meta intermediária do meu enorme dia, ainda estava a 2 horas e meia de caminhada.

À medida que avançava a paisagem parecia cada vez menos animadora. A trilha de pedras, com constantes subidas e descidas, percorria uma região natural muito bonita, mas coberta por cerração e, já nas proximidades de Moëde Anterne, neve. Cheguei enfim a esse refúgio, circulei rapidamente entre as construções de madeira, passei pelo lugar onde os maratonistas recebiam medalhas e logo distanciei-me do lugar. Havia previsto uma longa pausa para descanso e almoço e, à falta de um lugar mais protegido do frio e da cerração, escolhi um relvado natural entre graciosas flores nativas, longe do estabelecimento. Fiz uma boa refeição de sanduíche de queijo e atum, preparado ali mesmo, biscoitos, chocolate e suco. Por volta de 14 h retomei a marcha.







Depois que deixa a região do Moëde Anterne, a trilha percorre a bela Reserva Natural de Passy, o que significa um longo trecho em declive, o trespasse de um córrego por meio de uma pontezinha e um longo trecho em aclive já do outro lado do curso de água. Geometricamente é como se o caminhante fizesse um longo “V”, os dois trechos de declive e aclive simetricamente colocados quase em paralelo ao vale do córrego.

Foi nesse segundo trecho, uma subida constante e de inclinação não muito acentuada, que comecei a sentir os efeitos do esforço físico. Sentia-me levemente tonto e um zumbido nos ouvidos me preocupava. Sabia que carregava um peso que oscilava entre 12,5 e 14 quilos, a depender do consumo de alimentos e da precisão das balanças. O último dado que tinha era de uma tosca balança manual amarrada à porta do refúgio Alfred Wills. Quatorze quilos. Um pensamento cruzou a minha mente: desfazer-me de algo. Mas tudo o que carregava era essencial. Água, alimentos sólidos, duas baterias externas para o celular, jaqueta e estojo de primeiros socorros estavam entre os mais pesados, mas jamais poderia pensar em me desfazer de qualquer um desses itens. A provisão de água naquele momento deveria representar algo em torno de um quilo e meio da carga total. Havia água corrente confiável pelo caminho, mas podia-se percorrer longos trechos sem nenhuma fonte ou córrego, especialmente nas partes mais altas e cansativas. Portanto, jamais poderia pensar em me desfazer da reserva hídrica.

Abandonei esses pensamentos sombrios e procurei direcionar a mente para seguir em frente. Todavia, ao passar por uma estrutura abandonada de paredes de pedra, sem teto, não pude deixar de anotar mentalmente: um tosco abrigo de emergência caso eu não consiga...





Dois rapazes cruzaram comigo no sentido inverso. Conversamos rapidamente. Perguntei-lhes sobre o Col du Brévent. “Você levará uma hora e vinte minutos”, respondeu um deles com precisão. Os meus cálculos indicavam menos. Continuei a subir. Eu já sabia de antemão que nessa parte da trilha estaria sempre a subir, em busca das maiores altitudes que o caminhante alcança na etapa alpina da GR5. Estava cansado e preocupado. Consultava o sinal de celular com frequência, para notar que era intermitente; mas, na maior parte do tempo, havia sinal de telefonia e de internet, o que me tranquilizava um pouco.

Cruzei por mais dois caminhantes, um homem e uma mulher, sempre no sentido inverso. De novo a mesma pergunta. “O Col du Brévent deve estar a quarenta minutos ainda, talvez mais”, respondeu o homem, num tom de voz manso e solidário. Desejaram-me boa sorte e seguiram. Na segunda fase do dia de caminhada, que se iniciara no Moëde Anterne cerca de três horas antes, havia passado por apenas cinco pessoas na trilha. Estava na etapa mais cansativa e mais remota da viagem a pé pelos Alpes. A paisagem deslumbrante de montanhas verdejantes e maciços rochosos nus provocava no caminhante exausto um misto de admiração e pesar. Continuava a tirar fotos, mas os meus pensamentos eram crescentemente invadidos pelo temor de não conseguir chegar a Bellachat e ser obrigado a passar a noite nas montanhas geladas. Armar uma pequena fogueira é sempre uma sugestão teórica com baixa efetividade prática. Carregava um pequeno dispositivo de ignição de emergência, que sabia poder levar muito tempo para produzir faíscas e incendiar um chumaço. Dependeria de lenha seca num ambiente de cerração úmida. E fogo em áreas naturais, uma vez iniciado, exige monitoramento constante, o que impediria um sono mais longo.

“Não”, dialogava comigo mesmo, “isso não pode acontecer em hipótese alguma”. “Tenho que chegar ao refúgio a qualquer custo, pois não tenho barraca nem saco de dormir e uma fogueira é um recurso incerto”. Numa situação extrema, devaneava, talvez pedisse socorro para os seres humanos mais próximos, que estavam no próprio Bellachat. Outro recurso incerto. A única forma de percorrer essas trilhas nas montanhas é a pé; portanto, os meus imaginários salvadores teriam que caminhar horas no sentido inverso para chegar até mim. E viriam de um refúgio simples, isolado nas montanhas, com poucos recursos.

Cheguei aos trechos nevados que cercam o Col du Brévent. A neve traiçoeira cobrira inteiramente a trilha. Seguia a rota marcada no Wikiloc por três caminhantes franceses e vez ou outra consultava o Iphigénie e até mesmo o Google Maps. Sem visualização direta do caminho, dependia inteiramente dos aplicativos de localização. Num determinado ponto, abriram-se à minha frente três terrenos inteiramente nevados, todos eles em aclive. Tomei o da direita, mas cerca de 50 metros à frente constatei pelo Wikiloc que provavelmente era o caminho errado. Retornei lentamente e tomei o caminho do centro, que afinal era o correto. Caminhava com dificuldade sobre a neve, as botas mergulhavam na camada espessa e traziam pequenos blocos que entravam pelas meias e esfriavam os meus pés. Sentia-me como que fisgado pela neve, que tentava impedir-me de continuar, e ansiava por sair dali.

Finalmente cheguei a um bloco de pedras armado por mão humana, com três placas fixadas. O Col du Brévent, cogitei, já que não havia uma indicação precisa de que fosse ali o lugar. Iphigénie me indicava que sim, estava exatamente no col. O termo francês “col”, extensivamente utilizado nos Alpes, significa uma passagem entre cumes de montanhas, uma abertura, de altitude comparativamente mais baixa, que permite atravessar uma cadeia montanhosa. Corresponderia ao que os viajantes do passado denominavam, no Brasil, “passo”. E, claro, não é um ponto único no espaço, mas uma abertura possível que pode se alongar por quilômetros de extensão.





Continuava a caminhar sobre a neve. De tempos em tempos apareciam círculos amarelos pintados nas rochas, uma óbvia forma encontrada de sinalizar a trilha escondida sob a neve. Encontrei um casal, no sentido inverso, que também hesitava sobre o caminho. Aparentemente pretendiam acampar nas vizinhanças, pelo que depreendi da rápida conversa. “Como está a trilha mais à frente?”, indaguei. “Bem, aqui está bom, mas lá na frente é subir quase em escalada, agarrando as pedras com as mãos”, informou o homem. Essa informação me entristeceu. Já eram quase seis horas da tarde, eu estava exausto, a temperatura estava cada vez mais baixa e a cerração tomava toda a área.

Às 18 h cheguei ao trecho mais íngreme mencionado pelo caminhante. Ele tinha razão. O caminho seguia por áreas rochosas fortemente inclinadas; em um ponto, chegaram a instalar duas escadas de ferro nas rochas para facilitar a subida ou descida. Ao chegar às duas escadas, tirei uma foto, encurtei os dois bastões de caminhada e prendi-os firmemente nas alças da mochila. Precisaria das duas mãos livres para agarrar as escadas. Subi rapidamente e lá em cima desatei os bastões e estiquei-os novamente. No estado de exaustão em que me encontrava, qualquer esforço adicional consumia forças preciosas. Os atos de fixar e desafixar os bastões na mochila, apenas para subir duas escadas, que seriam tão simples em condições normais, pareceram-me uma dura exigência da trilha.





Meia hora depois cheguei ao cume do Le Brévent, com seus 2.525 metros de altitude e uma linha de teleférico a descer pela montanha. Eu já sabia que, em razão da hora avançada, não encontraria o veículo em funcionamento e portanto não poderia me valer desse recurso emergencial para quem percorre esse que é um dos trechos mais difíceis da GR5. Havia avistado, ainda no Col du Brévent, a última cabine a descer pelas montanhas em direção a Chamonix. “Lá se foi um dos meus recursos de emergência”, pensara então.

A placa indicava 45 minutos até Bellachat, o que, nas minhas condições, significaria uma hora ou mais de caminhada. Mas a trilha voltara a ser visível no terreno e logo comecei a encontrar algum movimento de pessoas. Um caminhante solitário na área do teleférico, um casal a armar uma barraca num terreno rochoso, uma jovem de feições orientais a caminhar sozinha no mesmo rumo que eu.

Às 19h30 cheguei a Bellachat. Tirei uma foto da placa do abrigo e enviei para os amigos alemães. Por segurança, fora, ao longo do dia, enviando a eles, por mensagens de Whatsapp, registros de cada lugar de referência a que chegava. “Muito bom”, parabenizou-me Franzi em francês. Na única sala do abrigo havia duas mesas grandes, ocupadas por alguns caminhantes, e uma mesa menor sem ninguém. Preferi essa última. Estava exausto pelo esforço físico inaudito, com fome e abalado pela situação de relativo risco a que me expusera. Havia caminhado 13 horas pelas geladas montanhas alpinas, duas a mais do que previra a amiga alemã, carregando uma mochila de pouco mais de 12 quilos. Cada colherada da sopa quente e cada pedaço do pão que puseram diante de mim pareciam-me a melhor refeição que jamais fizera. Estava salvo. Conseguira.





* Fontes de informação e orientação sobre a GR5:


La Grande Traversée des Alpes - https://www.grande-traversee-alpes.com/


Montagnes Magazine numero 492 - Juillet 2021


Grande Traversée des Alpes, saison 1. Patrick Beauvillard. Wikiloc.


Aplicativo de localização Iphigénie


Aplicativo de localização Google Maps


Mais fotos podem ser visualizadas em https://www.facebook.com/100003149812373/posts/4267609380020680/?d=n


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