Relatos peruanos 6 - Vivendo nas alturas: o Lago Titicaca e suas ilhas

Essas ilhas são famosas por serem construídas pelo homem a partir da planta denominada totora, que é uma forma local do junco. As Ilhas Flutuantes de Uros, no Lago Titicaca, no sul do Peru, são largas superfícies artificiais feitas de uma matéria vegetal esponjosa e flutuante, coberta por uma rede de galhos de junco. E, sim, tudo isso é obra humana. 

Nos tempos pré-incaicos as populações que moravam em terra, nas proximidades do Lago Titicaca, dedicavam-se à pesca e coleta de alimentos vegetais. Eram os uros. A chegada dos incas a essas paragens, no extremo sul do atual território peruano, forçou essas primeiras populações a buscar refúgio nas águas do lago, onde passaram a viver. Como? Improvisaram casas em pequenas embarcações construídas com o junco, abundante na região.

A construção de grandes plataformas flutuantes - as "ilhas" - é muito recente; data tão-somente da década de 80 do século XX. A abundância de junco animou os locais a utilizarem-no na construção não só de embarcações, mas também de largos espaços de vida e trabalho. Nos anos 90 essas ilhas foram descobertas pelos turistas, o que aparentemente desbaratou os tradicionais modos de vida locais. Os moradores passaram a ter como fonte de renda a recepção de turistas, a venda de passeios em embarcações locais e o comércio de artesanato de qualidade duvidosa. Instalou-se então, como em várias outras partes do mundo, uma espécie de "turismo fake". Talvez o melhor exemplo disso nas Ilhas Flutuantes de Uros sejam as embarcações turísticas locais. São construídas num padrão nitidamente oriental, muito semelhante ao das antigas embarcações chinesas. Seguramente os primeiros povos que singraram as águas do lago nunca produziram embarcações nesse estilo. Trata-se, muito provavelmente, de uma cópia local do estilo oriental, adaptado para atender à crescente demanda turística.

Deixamos as ilhas de junco e continuamos a singrar o Lago Titicaca na embarcação turística. Trata-se de um dos maiores lagos da América do Sul e do curso de água navegável mais alto do mundo. Esse lago de mais de 8.000 quilômetros quadrados de superfície está a inacreditáveis 3.800 metros de altitude. Por isso continua-se a lidar com o risco do mal de altitude. As embarcações carregam galões de oxigênio de emergência e eu levo comigo as inestimáveis folhas de coca e o frasco de água de Flórida. A propósito, no simples hotel de Puno, a cidade peruana de acesso ao lago, deparamos com algo inusitado: três ou quatro grandes galões de oxigênio estrategicamente depositados na área de entrada do estabelecimento. Essa cidade está também a pouco mais de 3.800 metros de altitude.

Como em outras regiões peruanas que percorri, o frio se mantém. Faz 11 graus no início da manhã em Puno. Brito se interpela frequentemente: "estamos a apenas 15 graus ao sul do Equador, no início do verão, e faz esse frio". De fato. Puno está mais ou menos na mesma latitude da explosivamente quente capital do Mato Grosso, Cuiabá. A explicação, evidentemente, é a altitude. Entre todas as cidades que percorri na jornada peruana, Puno é a mais alta. E... mais alto, mais frio.

A segunda parada do dia é a Ilha de Taquile. Aqui, claramente, chegamos a um lugar típico e autêntico dessa região. Os moradores vivem em certo isolamento; uma embarcação comum leva 3 horas para chegar à ilha a partir do porto de Puno. Não há órgãos do Estado, sendo a autoridade exercida por um "presidente". Mesmo a uma altitude de quase 4.000 metros, ainda é possível a prática da agricultura, principalmente de batata. Essa é uma dádiva do lago: encerrado na Cordilheira dos Andes, sem drenagem para nenhum ponto, ele constitui um sistema fechado a emitir água apenas através da evaporação. Essa umidade produzida pelas águas do lago torna ameno o clima local, facilitando a vida humana e permitindo a agricultura.

Vestígios pré-incaicos podem ser encontrados em Taquile. No fim da visita à ilha descemos uma escadaria de pedra de cerca de 500 degraus, que teria sido construída pelo povo tiahuanaco, civilização que antecedeu aos incas na ocupação da região.

Retornamos no final do dia a Puno. Gosto de dividir as cidades que visitei entre aquelas a que eu certamente voltaria; aquelas a que eu talvez voltasse; e aquelas a que não voltaria em hipótese alguma. Cusco está no primeiro grupo e Arequipa no segundo. Mas a Puno não pretendo voltar jamais. Suja, degradada, confusa, com seu porto poluído e suas habitações favelizadas nas encostas dos morros, a cidade não apresenta nenhum atrativo afora o acesso ao Lago Titicaca. Procuramos pela Plaza de Armas, que é o nome oficial das praças centrais das cidades peruanas. Está fechada por lonas, em processo de restauração. Curioso, Brito espia por um dos buracos da lona, mas não se vê nada que se possa apreciar. Percorremos a região central algumas vezes; não se vê uma praça, um jardim, uma edificação antiga arquitetonicamente interessante.

Mas o meu espírito está em festa em Puno. Uma festa peruana. Há quase quatro semanas antes, eu desembarcava em Iquitos, no extremo norte do país. Partindo da Amazônia peruana, seguira um itinerário que me levara às regiões mais interessantes do Peru. Conhecera as três grandes divisões geoecológicas do país: a selva, a costa e a serra. Percorrera as terras planas e úmidas do norte, com seus rios caudalosos e sua mata exuberante. Conhecera as áreas desérticas da costa e suas paisagens singulares. Caminhara dias e dias pelas serras interiores, refazendo os caminhos que os antigos incas haviam construído. Nas conversas ocasionais com guias, recepcionistas de hostels, colegas de passeios turísticos, havia encontrado um povo discreto, atencioso e hospitaleiro.

Parecia-me curioso que, sem dar por isso, eu tivesse iniciado o meu roteiro peruano por uma cidade a 104 metros de altitude e fora terminá-lo a mais de 3.800 metros. Fora me elevando aos poucos, o que talvez explique o fato de não ter passado por incômodos significativos quanto ao mal de altitude.

Silenciosamente, retirei do bolso o saquinho de folhas de coca, que vinha carregando desde o Vale do Colca. Coloquei-o sobre o velho criado-mudo do quarto de hotel em Puno. Não precisaria mais das folhas, que ficassem para os próximos visitantes desse país encantador. 

No dia seguinte, pela manhã, iniciamos o périplo aéreo que nos levaria de volta ao Brasil.












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