Relatos amazônicos 3 - Caminhando pela mata
Rio, cidade, floresta. Acordo bem cedo, o sol começando a brilhar no horizonte, tomo um lanche rápido no hotel e pego o ônibus de linha para Alter do Chão. Em uma hora, percorro o trajeto já conhecido e chego à vila, de onde pegarei o barco para a comunidade ribeirinha de Jamaraquá. Esse é um dos itinerários possíveis para se chegar à Floresta Nacional dos Tapajós, importante reserva ambiental que é um dos meus objetivos na região. Conhecendo-a completarei a tríade que, para mim, resume esta primeira fase da jornada pela Amazônia.
No dia anterior o barqueiro havia me incluído num grupo de cinco turistas, hospedados em Alter do Chão, e eu estava curioso sobre quem encontraria. Cinco jovens, quatro mulheres e um homem, com os quais a empatia foi imediata. Antes mesmo de se apresentar, uma delas, de João Pessoa, me olhou de cima a baixo, reparando no boné, bermuda e tênis de trekking, e sorrindo comentou: "Estás mesmo com look de quem vai fazer caminhada". "Bom sinal", murmurei comigo mesmo. "Sinal de que o dia será bom". Depois, ao longo da viagem, descobriria que apenas duas delas se conheciam previamente entre si. Os demais se conheceram nos dias de hospedagem no hostel de Alter do Chão.
O barco avança célere, subindo esse rio-oceano que é o Tapajós. À nossa esquerda vê-se a margem distante, o arvoredo e um ou outro sinal de ocupação humana. Nesta época de vazante, podem-se enxergar as faixas de areia exibidas com o recuo das águas. Mas à direita, até onde termina o horizonte, avista-se somente uma massa de água esverdeada.
Em uma hora estamos em Jamaraquá. Trata-se de uma comunidade de 33 famílias, cujas casas se dispersam numa área a beira-rio. Algumas construções de alvenaria, outras de madeira e folhas de palmeira. Tiro fotos de algumas crianças, impressionado com as marcantes feições indígenas.
As comunidades tapajônicas são o mais recente produto étnico e cultural de uma ocupação humana que se prolonga para milênios atrás. No Museu João Fona, em Santarém, pude apreciar vários artefatos arqueológicos produzidos pelos ancestrais desses ribeirinhos contemporâneos. Urnas mortuárias. O guia substituto do museu, na realidade um vigia atilado que ama o lugar e aprendeu a mostrá-lo para os visitantes, descreve para mim como os "índios" faziam a cremação do corpo e como eram utilizadas as urnas.
As comunidades tapajônicas são o mais recente produto étnico e cultural de uma ocupação humana que se prolonga para milênios atrás. No Museu João Fona, em Santarém, pude apreciar vários artefatos arqueológicos produzidos pelos ancestrais desses ribeirinhos contemporâneos. Urnas mortuárias. O guia substituto do museu, na realidade um vigia atilado que ama o lugar e aprendeu a mostrá-lo para os visitantes, descreve para mim como os "índios" faziam a cremação do corpo e como eram utilizadas as urnas.
Inicialmente, o cadáver era deixado a céu aberto para o pasto das aves de rapina. O esqueleto e os restos eram então queimados sobre a terra. Em seguida os ossos torrados eram transportados para uma das urnas e ali transformados em pó (ainda hoje se podem ver ossos quebrados no interior dessa urna). Essa farinha era então colocada em uma pequena urna de argila, uma peça artisticamente muito bonita, decorada com figuras de animais tais como o jacaré, o macaco e o sapo. Misturava-se água à farinha, sendo a bebida resultante servida aos homens - somente aos homens. Acreditava-se que quem bebesse o líquido incorporaria os valores físicos e morais do morto.
Na comunidade somos apresentados ao Paulinho, guia local que nos levará a conhecer a Floresta Nacional dos Tapajós, ou, sinteticamente, Flona. A caminhada pela mata é leve, o terreno é plano, com uma ou outra subida de pouca inclinação. Fazem-se muitas paradas para aprendizagem sobre as plantas, sendo este, certamente, o ponto alto da excursão. Como me conta Paulinho mais tarde, alguns guias mostram menos da riqueza local; focam exclusivamente na caminhada. Caminham rápido. Mas ele, nascido na comunidade vizinha de Maguari, desdobra-se em parar, mostrar, explicar e aguardar a satisfação desse verdadeiro vício contemporâneo, que é a fotografia. Só então segue caminho.
Essa caminhada pode didaticamente ser dividida em duas etapas. O termo final da primeira é a chegada a uma gigantesca árvore, uma sumaúma, que é uma das atrações mais buscadas pelos turistas que chegam à reserva. Essa é a segunda sumaúma em tamanho na região. A primeira está na comunidade de Maguari e é denominada, pela sua antiguidade, "sumaúma vovó". As informações prestadas pelos guias locais quanto à idade e altura dessas árvores, informações essas por sua vez reproduzidas pelos sites de viagem, parecem-me vagas e pouco precisas. De toda forma, sabe-se que são espécimes centenários.
A segunda etapa da caminhada inclui um delicioso banho num igarapé, um curso de água que nasce no interior da mata, corre sobre um leito arenoso e vai desaguar no Tapajós. Esse é um tesouro oculto pela floresta, um microssistema laboriosamente construído pela natureza e que para mim representa, como comento com Paulinho, um lugar "abençoado" pelos índios que viveram aqui.
Retornamos então a Jamaraquá, onde nos aguarda um almoço em que o prato principal são dois tambaquis assados. É o momento de uma conversa mais descontraída entre as pessoas. Os temas de conversa giram e giram e, curiosamente, acabam por recair em... viajar sozinho. Dos cinco jovens, três estão viajando sozinhos; apenas as duas garotas do Rio de Janeiro já se conheciam antes da viagem; mas uma delas me afirma que a companhia da amiga é uma situação incomum, pois normalmente viaja sozinha.
Prefiro ouvir a falar e assim deixo que a conversa flua livremente, sem emitir opinião. Estou curioso. Preferem ficar em hostels por razão obviamente financeira, mas também pela facilidade de conhecer pessoas. Desprezam os hotéis: uma das garotas me diz que são lugares de pessoas que não querem contato, que passam horas tediosamente sozinhas no quarto. Outra tenta se distinguir do fluxo turístico: "eu sou viajante, não turista". Obviamente são ágeis e versáteis nas redes sociais. Tratam a minha menção ao Facebook como algo antigo, "que as pessoas mais velhas preferem". Migraram todos para o Instagram, possivelmente há anos. Criam um grupo de Whatsapp e rapidamente já estou incluído. São amigáveis, sensatos e descolados.
A memória viaja. Uma vez, ou duas, em meados da década de 80, eu deixei em casa a parceira e o nosso bebê e rumei de ônibus para Morro de São Paulo, no litoral baiano. O lugar, hoje um destino turístico caro, era na época uma vila simples e hospitaleira, muito procurada por jovens alternativos. Não me lembro com precisão quanto tempo durou a viagem, mas um número me ronda a mente: 24 horas. É possível que tenha sido isso mesmo, pois hoje, de carro, a previsão é de 17 horas.
Era um leitor voraz e por isso levei livros e revistas. Calça leve, em tons de vermelho, de estilo oriental, chinelos de dedo, camiseta, cabelo grande e desarrumado, barba, óculos. Lia, lia e lia, enquanto o ônibus atravessava o norte de Minas e o sul da Bahia. Com o rabo do olho observava, de vez em quando, um casal de passageiros que viajava ao lado. Ambos jovens, o rapaz moreno, também de cabelo comprido, roupas leves, sandália de couro. A moça, muito bonita, pele acobreada, cabelos lisos e longos escorrendo pela cabeça até as costas. Jovens alternativos, quiçá mais alternativos que eu, que já tinha emprego fixo e família.
Aos poucos o rapaz foi se aproximando. Morava em Morro de São Paulo, a namorada era de Belo Horizonte e passaria uma temporada com ele na vila. Nessa faixa etária, em qualquer década que se esteja, o contato flui facilmente. Em dois tempos já me convidava para "ficar" na casa dele, que mais tarde descobriria ser uma espécie de cabana de madeira, construída por ele mesmo, erguida no alto de uma colina. Essa colina, da qual não me lembro o nome, era, a propósito, para onde iam as pessoas que não podiam pagar pela moradia nas proximidades das praias da vila - é possível que se estivesse então no início da onda turística que ganharia corpo nas décadas seguintes.
Já no final da viagem, Lulu - era o seu apelido - me declararia: "achei que você fosse um intelectual". E nisso havia um travo de preconceito. Numa época em que ainda se viajava à moda hippie, ou pelo menos dos resquícios dela, um jovem que carregasse livros e revistas e fosse tímido no contato humano podia mesmo ser considerado um "intelectual". Fui mais uma vez a Morro de São Paulo e de novo fui acolhido por Lulu. Encontrei-o algumas vezes em Belo Horizonte, tomamos algumas cervejas. Depois... tudo isso desapareceu na noite dos tempos. Nunca mais ouvi falar de Lulu e de sua bela namorada.
Lições da floresta (informações do guia Paulinho, de Maguari)
Breu branco: produz uma resina perfumada que já foi explorada comercialmente pela Natura.
Lições da floresta (informações do guia Paulinho, de Maguari)
Breu branco: produz uma resina perfumada que já foi explorada comercialmente pela Natura.
Sucuba: produz uma resina que alivia a dor de dente, resfriado e asma.
Cipó escada de jabuti: dele se faz um chá utilizado para problemas intestinais.
Casa de cupim presa no tronco das árvores: é queimada e a fumaça é colocada próxima de ferimento provocado por arraia, aliviando a dor.
Cipó macaco: o leite é utilizado para aliviar problemas musculares, tais como torções, contraturas, distensões.
Castanheira: produz o fruto de agradável sabor.
Seringueira: dela se extrai o látex para a produção de borracha.
Formigas saúvas: os índios as utilizavam para fechar ferimentos, tal como os pontos cirúrgicos atuais. A formiga era "aplicada" na pele e o seu ferrão fazia a ligação do ferimento. Várias formigas eram aplicadas num mesmo ferimento, em sucessão.
Palmeira caponga: utilizada para envolver o peixe antes de assá-lo.
Tapiririca: produz resina altamente inflamável, utilizada para fazer carvão. Quando há muito sol, essa árvore pode pegar fogo espontaneamente e incendiar a mata.
Jutaí: produz resina também inflamável.
Palmeira curuá: utilizada para o fabrico de tetos e paredes de casa, cortinas e também para se improvisar um rústico lugar para se dormir. Se esmagada e aplicada contra a pele ferida, auxilia a estancar sangramentos.
Maracujá do mato: fruta comestível de delicioso sabor.
Muúba: da sua superfície se extrai uma espécie de "massa" altamente colante, utilizada para a calafetação de embarcações.
Orelha de gato: planta macia ao toque. Produz uma sensação muito agradável quando tocada.
Cedro: espécimes enormes. Não foi informado se há utilização.
Piquiá: produz um óleo que é repelente e cicatrizante. Também da sua superfície se retira uma "massa" que cozida serve como alimento.
Taboca: do seu galho se faz um apito de alta potência, utilizado como forma de comunicação entre os índios.
Itaúba: a sua madeira, de grande resistência, é utilizada para a construção de casas e embarcações.
Angelim pedra: não foi informado se há utilização. Sabe-se que é utilizada em outros lugares na fabricação comercial de casas de madeira.
Formiga tachi: eram esmagadas e passadas no corpo, funcionando como repelente contra insetos.
Carapanaúba: o chá da sua casca era utilizado para tratar malária e febre amarela.
Jatobá: a sua seiva era utilizada no tratamento de reumatismo e pneumonia.
Dente de jacaré: o guia Paulinho utiliza esse amuleto no pescoço como proteção contra os perigos da mata.
Pararama: várias dessas lagartas formam uma espécie de manta sobre o tronco das árvores, que, se tocada, queima e pode levar à morte.
Pau rosa: produz uma seiva de cor intensa, utilizada pelos índios para pintar o rosto.
Louro rosa: o chá feito dessa planta ajuda a estancar o vômito.
Cacaueiro: foi mostrado um espécime nativo dessa árvore.
Por impedimento legal, não podem ser divulgadas fotos frontais que permitam a identificação de indivíduos pertencentes a populações indígenas.
Excelente relato minucioso da cultura local!
ResponderExcluirObrigado, Maria!
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