Relatos açorianos - Ilha Terceira
"As pessoas aqui são comedidas e um pouco fechadas", diz-me a nova amiga enquanto me fita com seus grandes olhos verdes, sentada do outro lado da mesa. Nos últimos dias vinha mantendo agradáveis conversas com ela pelo Facebook e era a primeira vez em que nos encontrávamos pessoalmente. Uma mulher oriunda "do continente", como dizem aqui, com muitos anos de moradia na ilha. Como ela mesma, por não ser natural dos Açores, sente-se uma pessoa de fora do arquipélago, inevitavelmente a conversa guia-se para o que me interessa nesse momento: as relações humanas nas ilhas. Trocamos impressões assimétricas, as minhas três semanas de vivência turística e a longa experiência dela na Ilha Terceira. Ouço-a com atenção. Ao fim, chegamos à conclusão óbvia mas necessária de que em qualquer lugar do mundo se encontrarão pessoas comedidas e expansivas, fechadas e abertas.
Estamos em um restaurante em frente à baía da minúscula Praia da Vitória, uma cidadezinha de 6.600 pessoas na área urbana que se orgulha de ser um dos dois municípios da Ilha Terceira. A noite é morna e agradável. No início da tarde havia visitado a cidade, cujo centro histórico inclui uma igreja antiga, alguns belos sobrados e duas ou três ruas de valor arquitetônico. "Uma hora é suficiente para que conheça tudo", garante-me o amável guia responsável por informar as pessoas que visitam a Igreja Matriz de Santa Cruz. Caminho um pouco pela zona histórica, tiro algumas fotos, chego à marina. Há alguns simpáticos restaurantes dispostos ao longo da curta avenida costeira; almoço num deles. De noite volto a essa pequena área costeira para o encontro com a amiga.
A minha base na ilha era a sua "capital", cujo intrigante nome deixara-me curioso desde que começara a planejar a visita à Terceira. "Angra do Heroísmo" é um topônimo que, bem ao gosto lusitano, aplicado exaustivamente também em outros espaços conquistados pelos portugueses, como o Brasil, junta uma característica natural a um dado da história humana. A angra, ou baía, que se forma em frente à zona onde cresceu a cidade, foi decisiva para a ocupação da ilha, pois oferecia a necessária profundidade para a ancoragem de naus e encontrava-se protegida da maior parte dos ventos, excetuado apenas o de Sudeste. Na realidade são duas baías, separadas pelo vulcão extinto conhecido como Monte Brasil, mas somente uma delas oferecia as condições para servir de base ao início do povoamento.
Em razão dessa proeminência política na defesa da monarquia constitucional, ou, nos termos da época, por ter sido sempre "mui nobre, leal e sempre constante cidade", ganhou Angra do Heroísmo, em 1837, o nome que detém até hoje.
Por todas as partes dessa bela cidade respira-se história. E erguem-se estátuas, monumentos, placas e outros símbolos de celebração. Vasco da Gama foi obrigado a desembarcar na ilha, em 1499, quando da sua primeira viagem marítima à Índia, devido ao estado de saúde do seu irmão? Pois ergue-se uma estátua ao grande navegador em frente à Igreja da Misericórdia. Essa, por sinal, teve ao seu lado o primeiro hospital dos Açores, ali instalado em 1492. O Padre Antônio Vieira celebrou uma missa, em 1654, na ermida onde hoje está o Núcleo de História Militar? Pois lá está uma placa alusiva ao evento. A participação da ilha foi decisiva no movimento liberal da primeira metade do século XIX? Pois ergue-se ao lado do Jardim Duque da Terceira, este por sinal muito belo, um obelisco em forma de pirâmide alusivo ao fato.
A cidade abriga ainda um dos mais importantes ícones da história dos Açores. A Fortaleza de São João Baptista constitui a mais importante fortificação açoriana, tendo sido estruturada a partir do final do século XVI como um dos vértices do triângulo defensivo espanhol que protegia as frotas provindas da América espanhola (prata americana), da Carreira das Índias e do Brasil (*). Os outros vértices desse triângulo estavam nas fortificações de Havana (Cuba) e Goa (Índia). Foi estrategicamente instalada de modo a proteger a baía da Ilha Terceira, por onde havia intensa circulação de embarcações, tendo sido, por isso mesmo, alvo frequente da ação de corsários. E é, por fim, uma das mais vastas fortificações remanescentes, sendo ainda hoje utilizada como guarnição militar portuguesa.
O segundo geossítio, a Gruta do Natal, é, por seu turno, um tubo lávico de 697 metros de comprimento, formado por lavas fluidas que tomaram direções diferentes e nesse processo formaram galerias, túneis e ramificações. Dois corredores podem ser visitados, ao longo dos quais se distribuem estalactites e estalagmites, bem como musgos e alguma vegetação rasteira que brota das paredes úmidas. Também aqui a iluminação artificial estrategicamente distribuída dá um toque especial ao lugar.
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Assim se encerra o meu périplo pelo Arquipélago dos Açores. Um mundo exótico, um conjunto de pequenas porções de terra emersas, por ação vulcânica, na vastidão do Oceano Atlântico. Habitadas por uma população forte, resistente e também reservada. No avião de volta a Lisboa, enquanto escrevo estas últimas notas de viagem, concluo que os Açores fisgaram-me definitivamente. Há encantamento e estranheza, dois itens indispensáveis na bagagem do viajante. Um lugar a que, certamente, voltarei ainda um dia.
Avaliação pessoal e subjetiva das atrações que visitei na Ilha Terceira, numa escala de 0 a 5, sendo 5 a melhor nota
Fortaleza de São Sebastião ("Castelinho"). Não visitada. A edificação histórica é hoje uma pousada de acesso restrito aos hóspedes. A sua estrutura externa dá uma boa ideia do objetivo de defesa da baía.
(*) Entre 1580 e 1640 Portugal pertenceu ao império espanhol.
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