Relatos açorianos - Ilha do Pico
Vulcões, caldeiras, crateras, erupções. "Magma", "Lava" e "Basalto" são nomes de restaurantes, hotéis e agências de ecoturismo. Sim, as nove ilhas açorianas têm origem vulcânica e eu já entrara em contato estreito com essa realidade geológica na Ilha de São Miguel. Mas é "no Pico", como gostam de chamar os picarotos à sua Ilha do Pico, que essa espécie de cultura do vulcanismo se revela com a sua maior expressão. E por uma razão muito simples: Pico é a ilha açoriana mais jovem, formada há apenas 300 mil anos. A mais antiga, Santa Maria, tem oito milhões de anos de formação. Portanto, é no Pico que estão mais evidentes os resquícios e mesmo a ação presente dos fenômenos vulcânicos.
"É belo o contraste entre a cor escura das rochas e o verdor da vegetação", define a discreta atendente do Moinho da Ponta Rasa, na localidade de São João. Numa conversa de cinco minutos, chegara, por meio de uma desconhecida que exerce a singela função de gerir as visitas turísticas e escolares a um moinho antigo, à identificação do que tanto impressiona na paisagem da ilha. Por onde se olhe, estão lá os maciços, rochedos, rochas e pedras de firme cor marrom escuro (castanho escuro). E não raramente no meio deles brota a urze, um arbusto que pode chegar a cinco metros de altura e se caracteriza por um acentuado e quase brilhante matiz verde escuro.
O que fazer com tanta pedra vulcânica? Os primeiros povoadores precisavam de espaço para plantar e para onde quer que dirigissem o olhar, lá estava um sem número de rochas e pedras a cobrir o solo. A primeira ideia foi simplesmente retirar as pedras e ir arranjando-as ao lado das plantações, numa disposição cujo conjunto agradasse aos olhos. Criaram-se assim os maroiços: "Os homens arrumaram as pedras, colocaram-nas a um canto da terra, fizeram, com as maiores, os alicerces e o suporte para a construção de um extraordinário monumento, em forma de castelo, ou em forma de onda gigante, como se o mar viesse a terra ou a terra visse, ao longe, as ondas encapeladas e as trouxesse para terra, para maior conforto e proteção. Nasceram, assim, os maroiços e neles os meninos de palmo se assentaram as pedrinhas e se deu aquela forma arredondada de quase todos os maroiços" (Jardim dos Maroiços, Madalena, Ilha do Pico).
Mas quando o plantio da uva para a produção de vinho, que fora introduzido pelos primeiros povoadores já no século XV, ganhou força como atividade econômica motor da ilha, outra solução foi engenhada para liberar o solo e aproveitar as pedras vulcânicas. Passaram a com elas construir muros baixos, formando uma rede de pequenos e contíguos lotes retangulares, denominados currais. No interior desses lotes eram plantadas as uvas, que assim ficavam protegidas da água do mar e do vento. Um esforço titânico de recolher as rochas, quebrá-las num tamanho compatível e formar um impressionante conjunto de canteiros cercados por muros baixos, no interior dos quais as uvas são plantadas. Esses lotes estendem-se por várias zonas da ilha, compreendendo uma área total de 987 hectares, tendo sido classificados, em 2004, pela Unesco, como paisagem cultural.
Vulcanismo, vinicultura e a presença de uma montanha com 2.351 metros de altitude são, talvez, as três características mais importantes da Ilha do Pico. A “Montanha do Pico”, uma expressão consagrada que tem um quê de redundância, constitui o ponto mais alto de Portugal, dá o óbvio nome à ilha e atrai trekkers nacionais e estrangeiros. A subida não é especialmente difícil e a fiz, sozinho e sem guia, em pouco menos de três horas. No cimo da montanha encontra-se a cratera do vulcão – pois o pico, como tantos outros nos Açores, é uma erupção vulcânica – e, dentro dessa cratera, uma erupção mais recente, de tamanho sensivelmente menor, a que se deu o nome de Piquinho. Da base desse segundo pico emanam fumarolas com forte cheiro de enxofre, que, segundo me informam, são produzidas pelo vulcão “adormecido”.
No dia em que subi o pico o céu estava parcialmente encoberto por nuvens e cerração. Mas, à medida que ascendia, o céu se abria e, já no cume, pude desfrutar de uma vista parcialmente desimpedida do mar, da faixa costeira, dos pequenos núcleos urbanos e dos campos de cultivo lá embaixo. A temperatura e o vento eram toleráveis, mas certamente foi decisiva no meu conforto térmico a inesperada e gentil oferta, pelo casal proprietário da guesthouse onde estava hospedado, de um grosso casaco de inverno. Sem esse casaco emprestado, possivelmente teria passado frio; na vila de Madalena a temperatura era de 17 graus Celsius naquele dia, mas caía bastante à medida que ganhava em altitude e cruzava a úmida camada de nuvens. O vento frio, do qual tinha especial receio, foi, felizmente, reduzindo-se à medida que subia, chegando a ser apenas um vento leve no cume. Como proteção contra a precipitação, que não houve, portava também um impermeável com capuz.
Na Casa da Montanha, a base mantida pela administração da Reserva Natural da Montanha do Pico, fora-me fornecido um GPS, com um botão de emergência em caso de acidente. Guardei o aparelho na mochila e não o utilizei em momento algum, pois a trilha é toda ela sinalizada com balizas visíveis, cuja numeração cresce de 1 a 47, esta última já na cratera do cume.
Mais do que o guia, que algumas pessoas opinaram ser quase indispensável nessa trilha, fizeram-me falta os bastões. A trilha é, em toda a sua extensão, uma faixa percorrida num chão de lava preta, coberto por pedras vulcânicas rugosas e roliças. Os bastões teriam sido um recurso adicional óbvio, bem o sabia. Não incluíra na equipagem da minha jornada pelos Açores o meu bastão pessoal, pois assim evitava pagar por bagagem transportada no porão dos aviões, reduzindo o custo dos deslocamentos aéreos. Esperava alugá-los na Casa da Montanha, mas ao lá chegar informaram-me que eram somente vendidos, a 12 euros a unidade. Esse custo, somado aos 25 euros pagos para entrar na Reserva, tornaria a atividade cara para o meu orçamento. Lamentei abrir mão dos bastões, mas no caminho improvisei um cajado rústico com um pau encontrado na mata.
A descida da Montanha do Pico exige mais do caminhante. Atenção e concentração a cada passo, para evitar o risco óbvio de um escorregão nas pedras soltas de uma trilha cuja inclinação negativa é respeitável. Descia da forma mais prudente, exercitando as pisadas de lado, travando a tendência ao deslizamento e protegendo os joelhos de um esforço excessivo. No final da descida, constatei tê-la feito em três horas, praticamente o mesmo tempo de subida, o que dá uma boa ideia da dificuldade desse percurso descendente. De novo na Casa da Montanha, deram-me um certificado, o que me deixou positivamente orgulhoso.
Nos dias seguintes uma alegria contida sobrevinha de tempos em tempos. Havia realizado o que talvez fosse a meta mais importante do meu périplo pelo arquipélago açoriano: subira ao ponto mais alto de Portugal e de lá pudera divisar, mesmo que parcialmente encoberta pela camada de nuvens, a beleza da paisagem de uma de suas ilhas mais exuberantes.
Era esse o estado em que me encontrava quando conheci pessoalmente Mila, moradora da ilha, com quem havia feito um contato prévio por meio dos grupos de amantes dos Açores do Facebook. Simpática, disponível e muito bem informada, forneceu-me informações, dicas e impressões que se revelariam valiosas na sequência da minha viagem.
Foi por meio de Mila, que, por vias transversas, cheguei a conhecer um tubo lávico. A primeira vez em que ouvi – ou melhor, li – a intrigante expressão foi de um dos guias de caminhada da ilha. Eu o conhecera na descida da Montanha do Pico, quando, em busca de informações e contato humano, acompanhei por algum tempo um casal que caminhava guiado por ele. Pareceu-me confiável e no dia seguinte propus a ele, pelo Whatsapp: “mostre-me algo que eu não tenha visto”. Não entendeu; pediu uma proposta mais concreta. Repeti o mesmo com outras palavras e por fim disse-me: “posso levar-te a um tubo lávico”. “Nunca ouvi falar disso, parece muito interessante. Mas diga-me quanto cobrará”. O valor proposto era alto; tentei negociar. Mas ele simplesmente... desapareceu. Não respondeu mais às minhas mensagens. Deixou, todavia, a informação.
“É a Gruta das Torres”, identificou Mila, quando relatei a ela o ocorrido. E graciosamente levou-me de carro até a entrada do lugar. Trata-se de um geossítio prioritário do Geoparque Açores da Unesco, um espaço vulcânico antecedido de um centro de interpretação e preparado para visitas voltadas para o geoturismo. Mas... enfim, o que vem a ser o tal tubo lávico? Imagine que a lava expelida pelo vulcão em erupção corre sobre a superfície em canais. Obviamente a uma temperatura muito alta, esses canais se solidificam ao entrar em contato com as superfícies e o ar externo, que estão a temperaturas muito mais baixas. Forma-se assim uma crosta externa, no interior da qual continua a correr o fluxo de lava. À medida que o fluxo diminui, o tubo passa a se esvaziar, restando por fim um canal vazio envolvido por uma crosta de lava solidificada. Na fase final da sua formação, o tubo lávico é colonizado por plantas, em especial junto às suas aberturas para o exterior. Esse canal, no caso da Gruta das Torres, tem 5.150 metros de extensão e é largo o suficiente para que se possa caminhar no seu interior. Essa gruta nada mais é, portanto, do que o canal resultante do derramamento da lava, constituindo o mais longo tubo lávico conhecido em Portugal.
No início deste relato mencionei os três elementos constitutivos mais importantes da Ilha do Pico: o vulcanismo, a vinicultura e a Montanha do Pico. Há, não obstante, um quarto elemento formador de grande importância no processo de ocupação humana desse espaço. Trata-se da atividade baleeira, desenvolvida entre meados do século XIX e os anos 80 do seguinte em várias zonas do arquipélago, tendo sido a Ilha do Pico a mais representativa. A caça à baleia e o beneficiamento dos seus produtos e subprodutos gerou mesmo uma atividade econômica própria, a chamada indústria baleeira, bem como uma série de manifestações ligadas ao ofício do baleeiro e às formas de expressão simbólica da sua atividade.
Museu dos Baleeiros
Museu dos Baleeiros
Depois de alguns dias na ilha, sigo no barco público que faz a ligação marítima entre as ilhas do chamado grupo central do arquipélago, para o meu terceiro destino nos Açores: a Ilha de São Jorge. Seguem comigo, na bagagem do viajante solo, as marcas de um espaço de beleza natural e exotismo, no qual geologia e cultura se combinam e se integram quase à perfeição.
Avaliação pessoal e subjetiva das atrações que visitei na Ilha do Pico, numa escala de 0 a 5, sendo 5 a melhor nota
Jardim dos Maroiços. Madalena. 3
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