Relatos amazônicos 4 - Barco regional


Escrevo este relato sentado numa rede armada no piso superior da embarcação que nos leva de Manaus a Santa Isabel do Rio Negro. Para mim é o início da segunda fase da jornada pela Amazônia, a visita às comunidades indígenas da Serra de Tapuruquara, organizada pela Garupa, ong socioambiental de São Paulo. Os organizadores tratam essa viagem como uma “aventura”, o que considero discutível. Ainda que o nome “aventura” seja muito desejado para qualificar viagens como essa; e mesmo “expedição”, muito utilizado há alguns anos, mantenha o seu encanto, penso que não se trata de nenhum deles. É uma viagem de cunho socioambiental, inserida no turismo comunitário.

No dia anterior deixei a simpática Santarém para seguir para Manaus por via aérea, onde me encontraria com o grupo que realizará a viagem. Passei parte da última manhã em Santarém aproveitando a bela vista do terraço do hotel, de onde se pode admirar o curso paralelo dos dois rios, este admirável cenário que constitui um dos valores da cidade. Como eu, outros já se encantaram com essa paisagem, a ponto de se tê-la representado na bandeira do município de Santarém. A metade superior da bandeira é dividida em duas faixas horizontais, uma amarela, representando o rio Amazonas, e outra azul, representando o rio Tapajós. Na outra metade foram gravados o pirarucu, o maior peixe de água doce da Amazônia, e a seringueira, responsável pelo boom econômico da região entre os séculos XIX e XX. Depois da visita ao Museu João Fona, onde o guia-vigia me mostrou e descreveu esses caracteres, fico a pensar em como um símbolo aparentemente inócuo como uma bandeira pode conter tantas informações importantes sobre o perfil natural local.

Lamentavelmente, o mesmo respeito simbólico pela natureza, que se teve no desenho da bandeira, não é reproduzido na vida concreta da cidade. Nos dias passados em Santarém pude confirmar a minha observação inicial: o esgoto corre a céu aberto por toda a cidade, ao longo dos meios-fios, em estreitos canais abertos entre a calçada e a rua. Não há rede subterrânea de esgoto nessa cidade de quase 300 mil habitantes. Ora, e não há outro destino para esse esgoto que não... os dois rios carinhosamente representados na bandeira. Então ponho-me a matutar sobre a equação perversa: esgoto que desce livremente ao rio – rio onde vivem peixes – peixes que são comidos pelo homem. Penso inclusive em mim mesmo, consumidor voraz de pescados nos dias passados na cidade.

É claro que esse não é um problema exclusivo de Santarém. O país que possui uma das mais extensas redes hidrográficas do mundo é também o país que se esmera em diariamente lançar aos rios toneladas e toneladas de esgoto doméstico e lixo químico. Santarém, a terceira maior cidade do Pará e o seu quarto maior índice de desenvolvimento humano, é apenas mais uma entre as centenas de cidades brasileiras a poluírem os seus rios.

Manaus é para mim, neste momento, apenas uma cidade de conexão entre o período solo de Santarém e Alter do Chão e a visita coletiva às comunidades indígenas. Na capital amazonense integro-me a um grupo heterogêneo de turistas de várias partes do Brasil, que farão juntos a visita às comunidades indígenas. No porto de Manaus embarcamos no Gênesis, um barco de linha que faz a ligação entre a capital e as cidades a oeste, singrando o rio Negro, a estrada fluvial dessa região. O nome “barco”, utiizado de forma genérica para tratar embarcações como essa, não faz justiça ao seu tamanho: o Gênesis tem 3 pisos e pode transportar até 157 passageiros.

Remexo-me na rede, ajeitando o notebook sobre o colo, enquanto escrevo. Daqui para a frente, durante 10 dias, essa será a minha cama. Não é novidade para mim passar a noite numa rede, mas nunca o fiz por um período tão longo. Numa viagem fluvial como essa, que durará três dias, essa é certamente a melhor solução para acomodar os passageiros durante a noite. Na Indonésia, em 1998, eu e a parceira viajamos sentados em poltronas dispostas em linha, como num cinema. Na tela em frente eram permanentemente exibidas ruidosas chanchadas indonésias. Essas poltronas, aliás, foram uma conquista do segundo dia, numa viagem que durou três dias. Quando entramos no barco, no início da viagem marítima, os únicos lugares disponíveis ficavam no porão, um lugar quente, abafado e insalubre. Durante a única noite que passamos ali, acordamos com um ruído estranho, olhamos para cima e, ao longo da tubulação paralela ao teto, corriam... ratos.

No rio São Francisco, em 2001, a equipe de pesquisadores que eu integrava dormia em beliches nas cabines abertas, como uma espécie de hostel fluvial. Um dia, ao entardecer, descendo o rio a jusante da barragem de Sobradinho, a barcaça começou a balançar. A mareta aumentara consideravelmente. O movimento foi aumentando e em pouco tempo os objetos começaram a deslizar nos balcões e mesas. Pratos se espatifaram no chão. Os homens da tripulação seguravam os dois freezers, temerosos de que deslizassem pelo piso. As pessoas se seguravam onde podiam. O maior risco era de que a embarcação fosse jogada de encontro aos troncos secos e pontudos que se destacavam na paisagem; tratava-se de antigas árvores parcialmente submersas pela elevação das águas da represa. “Seu” Pedro, o piloto, um pachorrento senhor de 73 anos, que conduzia a embarcação usando uma touca e chinelas caseiras, como se estivesse pronto para dormir, manteve-se impávido. Enquanto isso, a barcaça “jogava” de um lado para o outro. Custamos a sair daquela situação.

Os barcos são os ônibus da Amazônia”, dissera-nos um membro do Instituto Socioambiental ainda em Manaus. Marcílio é paraibano e está há 32 anos na Amazônia, oito dos quais vividos em aldeias indígenas. As duas filhas nasceram em aldeias. A sua síntese da importância do transporte fluvial na região é correta, mas poderia ser ampliada. Barcos como este no qual viajamos oferecem recursos para facilitar a jornada fluvial, que ultrapassam o que normalmente se tem nas viagens por terra. Na nossa viagem de 48 horas, ou seja, duas noites e dois dias embarcados, tivemos três refeições diárias, preparadas na cozinha da embarcação. A comida é simples e farta. Não há mesas e cadeiras disponíveis para as refeições; come-se em pé com o prato apoiado na amurada do barco. Banhos são possíveis, utilizando-se a água do rio Negro, bombeada para a embarcação. Há um pequeno bar, um depósito para cargas maiores no porão e é possível até mesmo se lavar algumas peças de roupa, o que fiz na manhã do segundo dia. As passagens para a viagem são vendidas em um modesto balcão provisoriamente instalado no porto, que fica ali apenas algumas horas antes da partida. Não se aceitam cartões bancários. O pagamento em espécie é feito e o nome do passageiro anotado a mão num caderno. Posteriormente o capitão percorre a embarcação perguntando um por um os nomes dos passageiros e conferindo no caderno. Como me conta Marcelo, colega do grupo, ele tentara de várias formas acessar informações sobre a viagem pela Internet ou por via telefônica. Não tivera sucesso. Só foi entender porque não conseguira, conclui divertido, ao observar a simplicidade do processo de venda e conferência de passagens. Trata-se, enfim, de uma típica embarcação de linha da Amazônia, rústica, lenta, eficaz e muito utilizada pela população local.

A tripulação é cordial com o nosso grupo e me apercebo que essa cordialidade não se estende aos demais passageiros. Provavelmente veem em nós um conjunto de pessoas “brancas”, “ricas”, que viajam por lazer e cultura, carregam equipamentos caros e vestem boas roupas. Ao passo que os demais passageiros são “nativos” da região, na sua maioria pessoas pobres ou de classe média, que viajam a trabalho ou para visitar parentes. Ainda que sejamos certamente diferentes, somos alvo de pouca curiosidade. Um ou outro passageiro local se anima a iniciar uma conversa conosco.

O barco segue sem parar por um dia inteiro, a uma velocidade de apenas inacreditáveis 16 km/h. “Pouco mais do que a velocidade máxima de uma esteira de ginástica”, penso. Na tarde do segundo dia, a embarcação faz a única parada em Barcelos, para depois seguir ininterruptamente até Santa Isabel do Rio Negro. Esse ritmo lento e contínuo acaba por ensejar os contatos entre os passageiros. Ou pelo menos entre as pessoas do nosso grupo e alguns passageiros, pois não notei sinais de amistosidade entre os passageiros locais.

Tipos humanos em viagem. Gleilson, 36 anos, é representante comercial. Veio de Fortaleza e viaja pela região apresentando coleções de roupas em lojas das cidades. Diz-me ter uma boa clientela. Viaja primeiro para os lugares de mais difícil acesso, por barco, e depois visita as cidades aonde pode chegar de avião ou ônibus. Parece adaptado a essa vida errante; mantém um apartamento alugado em Manaus e não tem relacionamento amoroso fixo. “Com essa vida que levo, seria impossível”, pontua. Falo então sobre a minha nova realidade de aposentado com tempo livre e desejo de viajar, a relação amorosa que se esvai, o desejo de morar por algum tempo na Amazônia (Alter do Chão?). Incrível o que se pode confidenciar a um desconhecido numa viagem de barco de 48 horas.

Juvêncio, 67 anos, índio da etnia arapaso. Reside em Iauret, distrito de São Gabriel da Cachoeira, e está retornando de uma visita ao filho em Manaus. Conta-me orgulhosamente que o filho é estudante de Medicina, curso no qual ingressou pelo sistema de cotas para pessoas indígenas.

Em Iauret há nove etnias indígenas, cada uma falante de uma língua. A língua comum é o tucano. Cultivam mandioca, macaxeira, abacaxi, cana-de-açúcar, cará, batata doce, girimum, pimenta. Pescam e caçam.

Entramos no terreno religioso, uma das minhas curiosidades. Terreno pantanoso. Juvêncio defende tenazmente, nas suas palavras, a “evangelização”, os “missionários”, o “Papa Francisco”. O catolicismo, seus símbolos, ritos e moral, é a sua única referência religiosa. Pergunto-lhe se os índios não tinham uma forma diferente de religião; todavia, enquanto faço a pergunta, pergunto-me a mim mesmo se se poderia denominar “religião” aos sistemas cosmológicos indígenas. Para Juvêncio, a cultura indígena e o catolicismo são mundos completamente separados, sem convívio possível. Conta-me, a propósito da minha pergunta, um caso lendário, em que se teria encontrado, num antigo território indígena, uma cruz enterrada a 30 metros da superfície, provando que os índios já eram próximos do catolicismo.

A conversa avança. Juvêncio é inteligente, esperto e observador. Como de vez em quando tomo notas na caderneta de viagem, sente-se entrevistado. A certa altura, me questiona:

– “Pergunta mais, pergunta sobre economia, criação dos filhos. Antropologia”. Surpreendo-me. A palavra surgiu espontaneamente da sua boca.

– “Você é esperto, Juvêncio. Está me dando a pauta da nossa conversa. Você já deve ter sido entrevistado por muitas pessoas”. Não tenho certeza se entendeu o sentido específico da palavra “pauta”, mas certamente compreendeu o meu comentário. Dá-me um tapinha na perna, uma risada, e continuamos.

– “No grupo de vocês há algum antropólogo?”, pergunta.

– “Não. Eu sou historiador, mas não há nenhum antropólogo. Nós estamos numa viagem para conhecer a região, não é uma viagem de pesquisa”.

– “Sim, entendo. E esse rapaz que está aqui com a moça, você sabe o nome dele?”. Refere-se ao casal de cariocas que integra o grupo.

– “Não, não sei”. Ainda não memorizara os nomes de ambos.

– “E da moça, você sabe o nome?”

– “Também não, Juvêncio. Por que?”

– “Eles ficam se agarrando e beijando o tempo todo. Um não larga o outro. Eles se conheceram aqui?”

– “Não, eles já se conheciam. São do Rio de Janeiro, advogados”.

– “Ah, advogados”.

– “Mas e entre os índios, Juvêncio, não se namora assim?”

– “Não. Quando uma mulher gosta de um homem, ela joga uma pedrinha ou um pedacinho de papel nele, de longe. Ele olha, ela vira a cara, ele não percebe quem foi. E ficam assim um tempo”.

– “E quando se aproximam, como é?”

– “Aí um fica encarando o outro, os olhos presos nos olhos do outro”.

– “E não se abraçam, beijam?”

– “Sim, quando estão juntos se abraçam, beijam”.

– “Beijam onde, Juvêncio?”.

– “Aqui, aqui, aqui”, diz, mostrando-me o rosto, o pescoço, os ombros.

– “E beijo na boca, existe entre os índios?”

– “Ah, beijo na boca só com muuuuuita paixão!”. E dá uma gargalhada.

No início da tarde chegamos a Santa Isabel do Rio Negro, onde deixaremos o barco regional e pegaremos as “voadeiras”, pequenas lanchas que nos levarão às comunidades indígenas, assim conhecidas obviamente em razão da velocidade com que se deslocam. Somos um grupo de 12 pessoas, oriundas do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Brasília. Os interesses e as abordagens são diversificados, mas sente-se no grupo, à medida que a viagem avança e se torna mais e mais próxima a chegada às comunidades da Serra de Tapuruquara, um crescente entusiasmo com a singular paisagem natural e humana deste rincão brasileiro.


Por impedimento legal, não podem ser divulgadas fotos frontais que permitam a identificação de indivíduos pertencentes a populações indígenas.











Comentários

  1. Barcelos, Santarém, Alter do Chão, só pelos nomes parece que é uma viagem em Portugal! Mas pelo resto da descrição não podia ser mais diferente. Estou a adorar a "nossa" viagem. Obrigado por toda a partilha.

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    1. Que bom que tem gostado, obrigado!
      Sobre os nomes das cidades, no século XVIII atribuíram-se a vários lugares desta região nomes idênticos aos de cidades portuguesas. Acreditava-se que assim se modernizaria a Amazônia.

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