Relatos açorianos - Ilha de São Jorge
A principal variável na vida de moradores e viajantes nos Açores: o clima. Diferentemente das áreas continentais, no arquipélago a variação climática é enorme. Chega a ser quase imprevisível e, a depender do seu estado de humor, enlouquecedora. É preciso se acostumar a ela. Pois, além de variar com certa cadência e previsibilidade ao longo dos meses do ano, como na grande maioria dos lugares, o clima nos Açores pode também mudar de semana a semana, dia a dia e até mesmo hora a hora. Num momento há cerração completa, que bloqueia a visibilidade a alguns metros de distância. No momento seguinte o vento empurra as massas de vapor de água e o sol reaparece. No terceiro momento, uma chuva fina passa a cair.
E, mais, a variação climática ocorre entre ilhas que estão muito próximas, como Faial, São Jorge e Pico, e também dentro da mesma ilha. Em São Jorge o sol está aberto no Topo, no extremo oriental da ilha, e há cerração nos Rosais, no outro extremo. Ou vice-versa. Os dois pontos estão a pouco mais de 50 quilômetros um do outro. E mesmo entre lugares muito próximos, como Norte Grande e Calheta, também em São Jorge, cuja distância em linha reta não deve ser maior do que 10 quilômetros. Como dizem os locais, "hoje no norte há chuva, mas no sul o sol está a brilhar" (*).
Provavelmente nos meses de verão há mais estabilidade, mas essa é pelo menos a realidade do viajante que optou pelo outono. Depois de dois dias de clima incerto, com nevoeiro e chuva fina, nos quais permaneci em Velas, resolvi seguir o conselho que Mila me dava à distância, por mensagens eletrônicas. "Olhe, acho uma pena não ires pelo menos à Fajã dos Cubres e à Fajã do Santo Cristo. A primeira foi eleita uma das Sete Maravilhas de Portugal, na categoria Aldeias de Mar. São lindíssimas. E mesmo com o tempo nublado, dá para se ver muito da paisagem". Ela tinha razão. No terceiro dia deixei a minúscula e pacata Velas e saí a conhecer os demais lugares da Ilha de São Jorge.
Fajã. O termo sonoro e agradável aos ouvidos, que não conhecia, designa uma formação geofísica específica que tem na Ilha de São Jorge o seu lugar de maior ocorrência. Levei algum tempo para compreender inteiramente o que o termo designa. Imagine um terreno inteiramente plano, num formato semicircular ou triangular, muito amplo, situado entre os penhascos e o mar. Esse terreno foi formado por materiais desprendidos das montanhas ou por deltas lávicos que resultaram do escoamento de lava no mar. Em muitos casos há nessa área lagoas alimentadas por água da chuva ou pela invasão do mar, o que, por sua vez, torna as terras da fajã extremamente férteis. Aproveitando-se da planura e da fertilidade, o homem estabelece ali um núcleo de ocupação. Inicia o plantio de cereais, traz algum gado, constrói as primeiras casas e – preciso dizê-lo? – edifica uma igreja. A fajã ganha um nome: Fajã do Ouvidor, dos Cubres, do Santo Cristo; e mesmo a singela "Fajãzinha". Numa pesquisa rápida, contei 74 fajãs na Ilha de São Jorge. Ah, e ainda mais um ponto positivo dessa formação em relação às demais áreas da ilha: em geral ela apresenta um microclima diferente, mais ameno e cálido nos meses frios e mais fresco no verão.
Uma boa forma de se conhecer as fajãs é caminhar entre elas. Sempre seguindo as boas sugestões de Mila, escolho a curta trilha entre a Fajã dos Cubres e a Fajã do Santo Cristo, que oferece lindas vistas e está no roteiro de caminhadas da ilha. Inicio às 11 horas da manhã de um dia nublado. Venço rapidamente os poucos quilômetros que separam as duas, uma rota que não é inteiramente plana, pois a zona de conexão entre as fajãs apresenta algumas elevações e colinas baixas, de onde se avistam as falésias e o mar. Ao chegar à Fajã do Santo Cristo estava descansado e desejoso de continuar a caminhar. Iniciei então a subida em direção à Serra do Topo, que constitui a segunda parte da trilha sinalizada nessa zona.
No início dessa segunda etapa encontro-me com uma caminhante que descia a serra, portanto no sentido oposto. É uma portuguesa sorridente, que informa-me que fazia a rota inversa, do topo para as fajãs. Presume que faltaria algo em torno de hora e meia para que eu chegasse ao cume da serra. Continuo a subir. A trilha, que entre as fajãs é larga, para permitir a passagem de quadriciclos (motos quatro), torna-se pouco a pouco mais estreita, enveredando por uma rica mata nativa. À medida que subo, mais caminhantes aparecem, sempre no sentido inverso. Noto que alguns olham-me com discreta surpresa. Como todos descem e ninguém, afora eu, sobe, começo a perguntar. Um grupo de caminhantes informa-me que o céu está cerrado acima e que ainda falta muito para se chegar ao topo. Um casal jovem é mais específico. "Achei mesmo estranho ver você a subir, pois ainda falta mais de uma hora para o topo", comenta a mulher. "O céu está completamente fechado lá em cima, não se vê nada". Pergunto a eles se conseguiria algum transporte ao chegar ao final da caminhada, pois havia deixado o carro no ponto inicial, na Fajã dos Cubres. "Não há nada", informa ela. "Nós apanhamos um táxi de Velas até o topo e estamos a descer de lá".
Diante desse quadro negativo, tomo a decisão que me parece mais sensata: desisto. Sento-me no chão, como alguma coisa da reduzida provisão que tinha comigo, descanso um pouco e tomo a rota de volta para o lugar de onde vim. No trajeto passo novamente pela portuguesa sorridente, que já chegara à Fajã do Santo Cristo. "Desisti!", exclamo sorrindo ao passar por ela. Ela ri muito, ofereço-lhe carona (boleia), diz que já há alguém que vai buscá-la. Às 3 horas da tarde estou de novo em frente à igreja da Fajã dos Cubres, onde deixara o carro.
O aluguel de carro, que em outros lugares do mundo seria dispensável, é quase imprescindível para se conhecer bem os Açores. Há transporte público regular nas ilhas, mas em geral os horários de autocarros e minibuses não atendem a turistas. Além disso, muitas das paragens naturais visitáveis estão a quilômetros de distância por estrada asfaltada ou de terra, vias a que normalmente o transporte público não chega.
É essa a situação do Pico da Esperança, o ponto mais alto da ilha de São Jorge (1.053 metros). Chega-se à sua base, de onde se pode caminhar até o topo, por meio de estradas de terra de pouca circulação e nenhum transporte público. Quando deixo a rodovia e tomo uma dessas estradas, fazendo-o de forma algo intuitiva, pois não está indicada no Google Maps, o dia já está quase no fim. Circulo cerca de meia hora pela estrada de terra, confiando sempre no mapa impresso que trazia comigo. O Google Maps complementa a localização, pois, ainda que as estradas não estejam indicadas no aplicativo, é possível se utilizar o seu mapa e o GPS para um posicionamento correto da direção a seguir. Passo por algumas placas indicativas de altitudes dos picos e pelo lugar onde, em 1999, uma aeronave colidiu com o Pico da Esperança, um acidente que matou 35 pessoas. Em dado momento, no início de uma longa subida, o carro derrapa. Recusa-se a subir. Trata-se de um veículo simples, de baixa potência, certamente mais apropriado para vias pavimentadas. Pacientemente, evitando forçar o motor e a bateria, consigo imprimir tração nas rodas e fazer o veículo subir. Chego enfim à base do pico; a partir daqui, a chegada ao topo é possível somente por trilha de caminhada. Um outro carro está estacionado na margem da estrada e no seu interior vejo algumas roupas e objetos pessoais. "Certamente um grupo de pessoas que acampará no pico e deixou aqui o veículo para resgatá-lo na manhã seguinte", conjeturo.
O sol já se pôs completamente e obviamente não é possível encetar a caminhada até o topo. Era apenas esse o meu objetivo: chegar de carro até a base do pico e voltar a partir daí, já que sabia que a caminhada seria impossível a essa hora. A estrada de terra continua em linha sinuosa, acompanhando as curvas de nível dos picos ao redor. Como a localização era precária, tinha diante de mim duas opções: prosseguir pela estrada no meio da noite, sem saber ao certo onde chegaria, ou retornar pela mesma rota que percorrera, que intuitivamente parecia-me mais longa. Decidi continuar pela estrada desconhecida e, felizmente, ao fim de cerca de meia hora, cheguei a placas indicativas para a Fajã Grande e, logo depois, para Velas.
Cheguei à cidade às nove e meia da noite, cansado, porém contente com o longo dia que tinha vivido. No único restaurante aberto, fui atendido por uma garçonete de inequívoca pronúncia brasileira. "Até aqui, nesta remota paragem portuguesa, chegam os meus compatriotas em busca de qualidade de vida e trabalho", pensei. Perguntei-lhe de onde era. "Brasília", respondeu-me.
Casa Museu Cunha da Silveira
Avaliação pessoal e subjetiva das atrações que visitei na Ilha de São Jorge, numa escala de 0 a 5, sendo 5 a melhor nota
Velas (cidade como um todo). 3
Casa Museu Cunha da Silveira. Velas. 4
Museu de Arte Sacra. Velas. O museu é mantido por voluntárias e os horários de visita são escassos
Igreja Matriz de São Jorge. Velas. 2
Jardim Municipal das Velas. 3
Parque Florestal das Sete Fontes. 3
Miradouro da Canada do Pessegueiro. 5
Fajã dos Cubres. Trata-se de uma das Sete Maravilhas de Portugal, na categoria Aldeias de Mar. 5
Fajã da Caldeira de Santo Cristo. 5
Serra do Topo (até onde fui, de acordo com o relato). 4
Ilhéu do Topo. 5
Calheta (cidade como um todo). 2
Rosais (vila como um todo). 2
Pico da Esperança. 4
Topo (vila como um todo). 2
(*) Uma nota útil: os açorianos costumam utilizar sites meteorológicos detalhados, como o Windguru e o Windy, que proveem informações sobre lugares específicos. O primeiro foi desenvolvido para auxiliar os surfistas.
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