Relatos açorianos - Ilha das Flores e Ilha do Corvo
É no extremo ocidental do arquipélago, nas suas duas ilhas mais isoladas, que as forças da natureza e os dramas humanos agem com maior rigor. Essas duas pequenas ilhas, Flores com 141 quilômetros quadrados de superfície e Corvo com apenas 17 quilômetros quadrados, são as últimas porções de terra europeias rumo ao Ocidente. Além delas, abre-se o Atlântico Norte e, depois, a América. "Para o olho humano, perdido na lonjura do espaço e na bruma do tempo, a Ilha das Flores situa-se na zona periférica do Arquipélago dos Açores. A geografia deu-lhe uma centralidade que os homens caprichosamente quase sempre lhe negaram; colocou-a como o último espaço europeu e a primeira terra a ser avistada no regresso do Novo Mundo" (*). O Ilhéu de Monchique, um rochedo oceânico com 30 metros de altura, pertencente à Ilha das Flores, constitui o ponto extremo ocidental do Arquipélago dos Açores, de Portugal e da Europa.
Corsários, naufrágios, furacões. A insularidade e o isolamento condicionaram uma ocupação humana sujeita a toda sorte de perigos. Entre os séculos XVI e XVIII a Ilha das Flores foi frequentemente atacada por corsários ingleses, holandeses e argelinos. No início a população aterrorizada fugia da zona costeira em direção às matas do interior da ilha. Depois passou a resistir aos ataques piratas. Mas a relação entre corsários e moradores não foi sempre violenta. Aos poucos os florentinos perceberam que entrar em acordo com os piratas poderia ser um bom negócio. Afinal, o poder régio estava muito distante e os navios piratas estavam frequentemente por ali, a necessitar de víveres, repouso e manutenção. Em 1611 há referência ao casamento do corsário inglês Peter Easton com a filha do capitão-mor da ilha. Este fato levou à punição do ouvidor, acusado pela Coroa de acolher corsários estrangeiros. Há ainda referências a moedas de ouro encontradas em casa de moradores, que teriam sido a paga recebida pelos florentinos pelos bens e serviços prestados aos corsários.
É famoso o naufrágio do Titanic, que colidiu com um iceberg em 1912. Mas três anos antes um outro naufrágio já ocorrera, envolvendo o paquete inglês Slavonia, que chocou-se com rochedos na costa da Ilha das Flores. A embarcação deveria passar a 160 quilômetros ao norte da Ilha do Corvo, mas no meio da viagem o comandante resolvera atender a um pedido dos passageiros da primeira classe, que queriam ver de perto os Açores. Ordenara então a mudança da rota e, já nas proximidades do arquipélago, foi enganado por leituras erradas da bússola e pelo intenso nevoeiro, que bloqueava a visibilidade. Na madrugada do dia 10 de junho de 1909, o navio naufragou, não sem antes ter emitido o primeiro pedido de socorro em SOS registrado na história, o que acabou por salvar a tripulação e os passageiros. Dois navios, o primeiro ancorado em Ponta Delgada e o segundo em Horta, chegaram a tempo ao local do desastre e retiraram os ocupantes do Slavonia. Mesmo assim o comandante, chocado com a situação, tentara se suicidar várias vezes durante o desastre, no que fora impedido pelo telegrafista do navio. Posteriormente viria a ser julgado e severamente repreendido num tribunal marítimo em Londres.
Parte da carga do navio foi recuperada por mergulhadores contratados pela empresa seguradora da embarcação. Mas muita coisa foi retirada clandestinamente pela população da ilha. No Museu das Flores pode-se assistir a um documentário sobre objetos de valor e peças de construção retiradas do navio em 1909 e ainda hoje existentes nas casas florentinas. E, por fim, por uma triste ironia, apenas uma semana depois do desastre foi finalizado o farol no local, o que teria impedido o naufrágio.
Essa condição de zona de fronteira insular foi ainda responsável por outro movimento humano importante na Ilha das Flores. Foi a partir dela que muitos jovens, alguns ainda adolescentes, partiram para o desconhecido engajando-se como grumetes nas baleeiras norteamericanas que passavam pela ilha. Posteriormente alguns deles prosperaram, tendo-se tornado capitães de embarcações ou trabalhadores bem sucedidos nos Estados Unidos. E pasme: em muitos casos a aventura clandestina, proibida pelas autoridades do arquipélago, era feita "a salto": o jovem florentino pobre, à vista de uma baleeira norteamericana na costa, simplesmente virava-se para o seu amigo e dizia: "avise à minha família que embarquei para a América!". E pulava na água com a roupa do corpo, sem documentos e sem dinheiro, para chegar à embarcação.
Imigrantes florentinos nos Estados Unidos - Museu das Flores
"Nunca mais quero ver algo parecido", diz-me, com os olhos úmidos, a gentil atendente da RIAC (**) local. Refere-se à passagem do furacão Lorenzo pela ilha, ocorrida em outubro do ano passado. Ela relata-me que nunca vira portas e janelas fechadas e trancadas chacoalharem com tanta intensidade. O único porto comercial da ilha foi totalmente destruído, bem como avariada uma embarcação da Atlântico Line, empresa responsável pelo transporte público naval de passageiros no arquipélago. Não houve vítimas fatais numa população que secularmente está habituada a lidar com os rigores do oceano. Nas palavras do capitão do porto destruído, no dia seguinte à passagem do furacão, havia então que fazer o que os açorianos fazem há seis séculos, que é reconstruir o que o mar destrói.
A natureza recompensou regiamente a Ilha das Flores por essas condições adversas. O visitante passeia entre imensas falésias, matas exuberantes, cascatas e lagoas vulcânicas, enquanto avista rochedos oceânicos no mar azul. Pode, como o fizemos, caminhar por uma trilha que envereda pela colina coberta de vegetação para chegar a uma exótica praia de pedras vulcânicas pretas e roliças. A natureza em estado puro da Ilha das Flores é de uma beleza pictórica incomparável.
Uma rápida caminhada nos leva, a Mila e eu, à zona de cascatas conhecida como Poço da Ribeira do Ferreiro (ou Poço da Alagoinha). Quando chegamos ao lugar, lá está um pequeno homem magro, quase seco, que fita-nos com grandes olhos verdes. Olho-o de volta, mas não retira os olhos estranhamente fixos em nós. Assemelha-se a um duende, agachado à beira do poço formado pelas cascatas, em meio à mata úmida. Aos poucos, para surpresa nossa, começa a reclamar do clima, num português para mim pouco compreensível. Ele é o homem responsável por fiscalizar esse pequeno recanto, mais uma atração nesta ilha que dizem de ser a de natureza mais rica do arquipélago. Passa dias inteiros ali, em meio ao nevoeiro, que, notamos imediatamente, começa a deprimi-lo. "E quando chove?", indaga Mila. Responde que abriga-se como pode sob as árvores, utilizando uma lona plástica que conserva junto com uma velha mochila, ambas penduradas nos galhos baixos de uma árvore próxima. Definitivamente um duende das matas florentinas. Mas um duende que, abatido pela cerração que tanto caracteriza os Açores, divorciou-se da mata que o cerca.
Para minha surpresa, a embarcação que nos levará até a Ilha do Corvo não é um dos convencionais barcos de alumínio, cobertos e fechados. É apenas uma grande lancha inflável com motor, inteiramente aberta. Eu esperava algo mais convencional, pois a atendente da RIAC havia me informado que essa embarcação estava também encarregada do transporte público semanal até o Corvo, em razão da avaria que sofrera o barco comum da Atlântico Line com o furacão do ano passado.
Bem, a realidade é que o piloto consegue acomodar na embarcação 27 pessoas, entre turistas, passageiros comuns e ele mesmo. Vão todos sentados "a cavalo" em bancos estreitos e muito próximos uns dos outros, em três filas. A mobilidade é mínima. Por outro lado, a lancha é mais leve e rápida do que os barcos comuns e logo chegamos à região das grutas marinhas da Ilha das Flores.
Esse é um dos lugares que mais me impressionam ao longo de toda a jornada pelos Açores. Percorremos grandes cavidades abertas nas altas falésias, parcialmente submersas sob as águas marinhas e banhadas aqui e ali por cascatas que jorram do alto e despencam no mar, formando uma cortina de água sob a qual passa a embarcação. A contraluz forma no interior das cavidades um cenário de cor e brilho, que lamentavelmente não consigo captar com a câmera do celular (telemóvel). Ademais, as cabeças dos passageiros, excitados com o cenário, se agitam à minha frente e, tão logo ergo um pouco o corpo para evitá-las na fotografia, sou repreendido pelo turista espanhol que viaja ao lado. "Esses 20 minutos estão entre os mais empolgantes que passei nas ilhas", confesso a Mila, enquanto a lancha ruma, agora em mar aberto, para a Ilha do Corvo.
Ao desembarcar, no meio da manhã um pouco fria e nublada, a emoção se intensifica. Por alguma razão desconhecida, a passagem pelas grutas e a chegada ao Corvo me trouxeram Pedro à memória. Os seus olhos verde-escuros amendoados, o seu sorriso aberto e feliz. Choro copiosamente, sentado em frente a Mila numa casa de lanches. Depois aquieto-me e iniciamos o passeio pela ilha.
O Centro de Interpretação de Aves Selvagens é um achado. "O expoente da insularidade" é o título do primeiro painel, de caráter geológico e histórico, título esse que mostra que não sou o único a me surpreender com a ilha. A seguir a eficiente guia do centro discorre sobre o tema principal: as aves. O milhafre, que foi confundido pelos primeiros povoadores com a ave de rapina açor, tendo surgido daí o nome do arquipélago. A propósito, a presença de aves de rapina nas ilhas, antes da chegada dos portugueses, constituiria um indício de que os lusitanos não foram os primeiros, pois as aves necessitam de restos de alimentos consumidos pelo homem. O cagarro, excelente voador, que já aos três meses de idade faz a sua primeira viagem de centenas de quilômetros pelo Oceano Atlântico. Em razão do Arquipélago dos Açores e a Ilha da Madeira concentrarem 85% da população mundial de cagarros, foi ali criado o SOS Cagarro. O criador do movimento, o engenheiro ambiental Luís Rocha Monteiro, foi um dos mortos no acidente aéreo na Ilha de São Jorge, em 1999, referido no meu terceiro relato açoriano.
Passeamos pela vila e admiramos suas casas antigas e modernas, a grande maioria de dois andares. Entre elas estão as casas de pedra do século XIX, uma das quais sedia um ecomuseu denominado "Casa do Tempo", infelizmente fechado no dia da nossa visita. Ao longo de uma via pública, a céu aberto, pode-se admirar uma belíssima exposição de imagens marinhas do fotógrafo Nuno Sá. A seguir chegamos aos moinhos, edificados numa colina, nas proximidades da costa. Esses moinhos, construídos em pedra preta, com cúpula e velas triangulares, distinguem-se dos demais exemplares do arquipélago e são os mais próximos dos que foram deixados pelos mouros na Península Ibérica (***). E, por fim, chegamos às duas lagoas vulcânicas localizadas na cratera do vulcão que deu origem à ilha, denominada "Caldeirão".
No fim da tarde retornamos à Ilha das Flores, contentes com o dia de visita à mais exótica das ilhas açorianas. A luz do sol ainda dá-nos tempo para um banho nas piscinas naturais da costa florentina, um dos prazeres de Mila.
Avaliação pessoal e subjetiva das atrações que visitei na Ilha das Flores, numa escala de 0 a 5, sendo 5 a melhor nota
(*) Painel no Museu das Flores.
(**) Rede Integrada de Atendimento ao Cidadão.
(***) Conforme a boa publicação Açores Natureza Viva. Guia Turístico, publicada pela ANV Unipessoal e distribuída gratuitamente nas ilhas.
Bom.
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