Ilha da Madeira

Flânerie. A palavra francesa, dos meus antigos estudos de cultura urbana, me vem espontaneamente quando inicio o primeiro dia de visita a Funchal, capital da Ilha da Madeira. No século XIX o termo aludia, para os literatos, ao ato de vagar sem rumo e observar, tendo sido flâneur um tipo literário bem definido, que passeava pelas ruas parisienses a observar discretamente as cenas urbanas que se desenrolavam.

É como me sinto nessa cidade de pouco mais de 110 mil pessoas, com suas ruas estreitas, seus calçadões e seus jardins, nos quais diariamente circulam milhares de pessoas e veículos. Não há aqui deslumbrantes edificações históricas ou exemplares arquitetônicos impressionantes. Mas há um ar urbano de núcleo de proporções médias que mistura a descontração de uma cidade insular à respeitabilidade dos mais de seis séculos de ocupação humana desse espaço.

É assim, vagando livremente, ora consultando as informações eletrônicas e impressas de viagem, ora deixando-me flanar sem rumo por ruas, ruelas e becos, que inicio por Funchal os seis dias que passarei na adorável Ilha da Madeira.







Mercado dos Lavradores


     



Museu A Cidade do Açúcar



Jardim Botânico da Madeira


Jardim Botânico da Madeira


Funchal, a cidade mais importante da Ilha da Madeira, é também o seu principal pólo de atração. Curioso sobre os demais lugares de uma ilha cujo perímetro costeiro é de 180 quilômetros, faço pequenas viagens a esses núcleos menores. Nenhum deles, todavia, me cativa em especial. Machico é uma cidade calma e agradável, que poderia passar despercebida, não fosse o fato de que foi a partir dela que se iniciou o povoamento da ilha. Foi ali que desembarcaram, em 1419, os navegantes portugueses Tristão Vaz Teixeira e João Gonçalves Zarco. Santana é conhecida pelas tradicionais casas de teto triangular feito de colmo. São Vicente é um pequenino núcleo urbano implantado entre respeitáveis maciços rochosos e o mar. Porto Muniz, por seu turno, impressiona pelo belíssimo espetáculo do mar revolto a atacar violentamente os rochedos próximos da costa. A disposição de alguns desses rochedos forma uma barreira protetora contra a força das vagas, concentrando águas calmas em piscinas naturais nas quais as pessoas se banham gostosamente. Alguns me dizem que se trata da praia mais bonita da ilha e tendo a concordar com isso.



Machico


Machico


São Vicente e o seu mar







Porto Moniz


Como os dias continuam longos nestas últimas semanas de verão, consigo entremear essas incursões urbanas com as trilhas de caminhada, que de fato, juntamente com a cidade de Funchal, representaram os momentos mais marcantes da minha passagem pela Madeira.

A caminhada pela Vereda da Ponta de São Lourenço possibilita conhecer de perto a natureza vulcânica dos terrenos da ilha, que em zonas urbanizadas permanece oculta sob camadas de asfalto. Percorri uma paisagem singular, formada por colinas e falésias, com pouca ou nenhuma vegetação. O terreno é arenoso e pouco fértil, nele crescendo quase somente vegetação rasteira. Mirando do alto a partir dos precipícios que percorria, podia divisar, lá embaixo, as praias de areia preta e rochas vulcânicas, banhadas pelas águas do mar. Havia lido em algum lugar sobre a diferença entre os dois mares que se podem observar nesse percurso. O que li se confirmava plenamente a cada passo: de um lado, o mar do sul, manso, de águas que formam uma superfície plácida e tranquila. Do outro lado o mar do norte, turbulento, a esbater constantemente com suas águas agitadas os rochedos e falésias da ilha.

Olhando na linha do horizonte podia divisar, ao longe, mesmo com o dia nublado, a Ilha de Corpo Santo, ao norte, e as ilhas desertas, ao sul.

Cheguei a um ponto da trilha, logo depois de passar pela Casa do Sardinha, fechada nestes tempos de covid, em que uma placa anunciava, em inglês e português: "Not allowed. Não é recomendado passar deste ponto". Além da placa uma promissora escada de degraus de areia fixados por estacas de madeira. "Bem", pensei, "ainda que a mensagem em inglês seja taxativa, em português certamente uma recomendação não é uma proibição". Prossegui, então, para chegar ao ponto mais alto e terminal da trilha, de onde se enxerga o farol instalado exatamente no ponto mais oriental da Ilha da Madeira. Esse equipamento, que entrou em funcionamento em 1870, foi, a propósito, o primeiro farol da ilha. Aves marinhas repousavam sobre as rochas, mas levantavam voo à minha aproximação, impedindo que as fotografasse. Pequenos lagartos circulavam pelo terreno rochoso e arenoso.













No terceiro dia na ilha fiz o percurso pedestre mais longo da viagem. A Levada do Caldeirão Verde e do Caldeirão do Inferno (*) estendem-se, juntas, por 8,7 quilômetros, que para mim representaram uma caminhada de cinco horas e meia (ida e volta).

Percorre-se uma região de exuberante mata tropical, formada por árvores de médio e grande porte, folhagens e abundante vegetação rasteira. Ao longo da trilha corre, em toda a sua extensão, um canal de água aberto para abastecer as áreas mais baixas. A mureta construída para conter a água é também, em muitos trechos da trilha, o piso sob o qual se caminha.

Ao chegar ao Caldeirão Verde, expressão que designa, na realidade, o poço formado por uma cascata que verte de altura considerável, deparei-me com uma barreira de paus, com o termo "perigo" grafado em vários idiomas. Provavelmente o alerta é devido ao risco das trombas d'água na estação chuvosa, mas tudo parece tranquilo neste final de verão europeu. Passo pela barreira para encontrar, dezenas de metros adiante, o referido poço. Quando retorno percebo depositados, na base da barreira de paus, um cacho de begônias e um papel embrulhado em plástico, no qual se lê, em italiano, uma homenagem póstuma a uma pessoa, de nome também italiano, que nasceu em 1995 e morreu em 2016.

Deixando o Caldeirão Verde, prossigo em direção à segunda parte da trilha, que leva ao chamado Caldeirão do Inferno. Poucas pessoas circulam pela trilha e observo que algumas delas retornam ao ponto de partida depois de visitar o Caldeirão Verde, abrindo mão da segunda parte do percurso.

Ao longo do terço final da trilha aparecem curiosas estruturas, que eu nunca havia encontrado em rotas de caminhada. As colinas e morros rochosos foram escavados, formando túneis na rocha. O canal condutor de água, que pode ter sido a razão da abertura desses túneis, continua a correr debaixo das camadas rochosas. Nenhuma luz chega do interior dos túneis e em alguns trechos é necessário dobrar o corpo para andar sob o teto baixo. Felizmente havia lido em algum lugar a recomendação para levar uma lanterna, sem a qual teria sido impossível penetrar nessas aberturas artificiais na rocha. Água mana do teto, formando poças no chão, nas quais o caminhante desavisado pode meter o calçado.

Na parte final da trilha caminho ouvindo um rugido cada vez mais alto. Sei que se trata do turbilhão de água que verte no interior das rochas. A paisagem ao redor é estranha: aos elementos naturais misturam-se estruturas edificadas pelo homem, tais como canais de água, túneis e gradis de ferro. Trata-se na realidade de um rústico sistema de captação da água que jorra, de modo a direcioná-la para o canal que me acompanhava desde o início do dia de caminhada.
















                           


A última caminhada que faço na ilha é a que leva ao Pico Ruivo, que, com 1.862 metros de altitude, é o ponto mais alto do Arquipélago da Madeira e o terceiro ponto mais alto de Portugal. Trata-se de uma rota curta, que faço em uma hora, partindo da Achada do Teixeira. Subo observando à direita os morros e colinas baixas, com o largo mar ao fundo, e à esquerda os grandes maciços rochosos. Ao longe avista-se um núcleo populacional que acredito ser a pequena cidade de Santana. A maior parte da trilha é formada por uma calçada de pedras largas, com degraus bem amplos e suaves. Na chegada ao topo, torna-se uma escada mais íngreme. Alguns abrigos de pedra foram instalados ao longo da rota, o que me parece quase um luxo, tendo em vista a pequena extensão do trajeto. A vegetação não é especialmente rica, mas é mais profusa do que na Vereda da Ponta de São Lourenço, exibindo árvores baixas, arbustos fortes e vasta cobertura vegetal rasteira.







Avaliação pessoal e subjetiva das atrações que visitei na Ilha da Madeira, numa escala de 0 a 5, sendo 5 a melhor nota

Funchal (a cidade como um todo). 5
Parque de Santa Catarina. Parque urbano. 2
Fortaleza de São Tiago. Não visitada
Centro histórico e arquitetônico de Funchal. 3
Museu de Arte Contemporânea da Madeira. Não visitado.
Museu da Cidade do Açúcar. 2
Sé de Funchal. 3
Igreja do Colégio dos Jesuítas (a torre, de onde se tem vista de parte da cidade, não foi visitada). 3
Assembleia Regional. 1
Mercado dos Lavradores. 3
Parque Municipal do Monte. 2
Igreja do Monte. 3
Marina de Funchal. 2
Jardim Botânico da Madeira. 4
Museu de História Natural (localizado no centro de Funchal; não confundir com o Museu de História Natural instalado dentro do Jardim Botânico, que foi visitado). Fechado à visitação, em obras.
Cabo Girão. Não visitado.
Teleférico de Funchal. 3
Vereda do Pico Ruivo. 4
Levada do Caldeirão Verde e Caldeirão do Inferno. 5
Vereda da Ponta de São Lourenço. 5
Grutas de São Vicente. Encontram-se fechadas à visitação.
Cascata das 25 Fontes. Não visitada.
Praia da Calheta. Praia artificial urbana. 1
Mochico. 2
São Vicente. 1
Porto Moniz. Atentar para a beleza ímpar do mar. 4



(*) Na Madeira o termo levada designa um canal construído em meio natural para levar água a terrenos agrícolas, que é exatamente o que encontrei nessa trilha.

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