Relatos amazônicos 6 - Manaus


Manaus não tem nada para se ver”, afirmara-me o motorista de aplicativo manuara lá em Belo Horizonte. O mesmo dissera um dos colegas do grupo da visita às comunidades indígenas. “Além desses quatro ou cinco quarteirões em torno do Teatro Amazonas, não há mais nada de interessante”. Eu reservara quatro dias e meio para a cidade no meu planejamento de viagem, mas, diante dessas avaliações negativas, comecei a pensar em alterar a programação. Presidente Figueiredo e suas cachoeiras, ao norte de Manaus, e Novo Airão e os parques de Anavilhanas e do Jaú, a oeste, pareciam boas opções. A elasticidade da viagem permitiria essas alterações, deixando para a cidade que não tem nada apenas um dia de visitação.

Decidi então dedicar esse único dia ao Musa, Museu da Amazônia. Trata-se, digamos assim, da mata teórica. Uma porção da floresta explicada cientificamente a partir da sua flora, dos seus insetos, animais e aves. E dos povos que a habitam. Como uma retrospectiva explicada, vou percorrendo caminhos que são, em miniatura, os mesmos caminhos que percorri na visita às comunidades indígenas. Uma torre de observação me permite uma visão que não tivera até então: estar acima da copa das mais altas árvores da floresta.

O Musa é distante do centro da cidade; o percurso até ele passa por bairros pobres de Manaus; a visitação pode levar horas, caminhando pelas trilhas e conhecendo as exposições nos prédios centrais. Faço um intervalo na hora do almoço e começo uma conversa com a vendedora da loja de artesanato do museu. Ela me fala de outros lugares da cidade. “O mercado, já visitou?”. E rapidamente descreve para mim um mercado típico, localizado no distante centro de Manaus.

No final da tarde deixo o Musa e sigo para o Mercado Municipal. Percorro as bancas: produtos regionais, ervas medicinais, peixes de várias espécies. A saída dos fundos aponta diretamente para um dos atracadouros do extenso porto de Manaus. Uma área degradada, suja e que se deve percorrer com cuidado. Fico algum tempo na amurada do porto, observando do alto a movimentação de canoeiros e barqueiros que, aparentemente no final das atividades do dia, tomam banho no rio. Enquanto se ensaboam, riem e brincam uns com os outros. Um casal se abraça. Todos com água até o peito. As rabetas e barcos que usam são muito pobres e acumulam uma confusão de lonas, plásticos, restos de madeira e pneus. As embarcações estão atracadas sobre uma área seca e muito suja. Tudo, menos as risadas dos homens e o erótico abraço do casal dentro da água, cheira a degradação ambiental e humana.

Afasto-me. A presença de um óbvio turista, tirando fotos com seu Iphone, pode começar a parecer atrativa para os ladrões que certamente atuam ali.

De novo no interior do mercado. As duas atendentes do posto de informações turísticas são gentis e muito bem informadas. Por meio delas tenho acesso a diversas informações sobre lugares dos quais não tinha conhecimento. Num mapa apontam as principais atrações da cidade, especialmente ao longo da Avenida Sete de Setembro. A minha perspectiva da cidade se alarga. Enquanto ouço a atendente, refaço mentalmente a programação, retirando Presidente Figueiredo do roteiro e dedicando a Manaus mais um dia.

De volta à região do Teatro Amazonas, onde fica o hotel em que estou hospedado, faço uma parada num simpático quiosque-livraria instalado no Largo de São Sebastião. Demoro-me a conversar com o proprietário, Joaquim Melo, um cinquentão bem informado e opinativo. É ele quem me apresenta o excelente História da Amazônia, de Márcio Souza. Com o rabo do olho percebo a passagem, lá fora, de dois travestis. Quando deixo o quiosque, ainda estão por lá. O meu caminho é aparentemente o mesmo deles. Seguem pelo calçadão com desenvoltura e coragem, um deles vestido com um minúsculo short verde-claro, o outro com um saiote. Falam alto e em espanhol (venezuelanos?). À medida que a noite avança, o ambiente das ruas se torna mais tenso. Nas proximidades do hotel, avisto veículos policiais estacionados ao lado de um terreno baldio, escuro. Os policiais conversam em voz bem alta, rindo e zombando de algo. Um deles, negro, alto e forte, está no terreno baldio falando ao celular. Evito a calçada e passo depressa pela rua, tentando me fazer invisível. A polícia brasileira pode ser um risco fatal.

Na manhã do segundo dia sigo pela Avenida Sete de Setembro – na realidade uma movimentada rua de mão única – até o seu início, onde está uma unidade da Marinha. Essa rota corta boa parte da região central da cidade. Lojas, restaurantes, bares, estabelecimentos de serviços, automóveis. Transeuntes, na sua maioria pessoas pobres, trabalhadores de baixa renda e desempregados que certamente moram na periferia. Mendigos, miseráveis e loucos, alguns dormindo solitários sobre caixas de papelão nas portas das lojas, outros em grupo, reunidos sob as poucas árvores, como na área lateral à Catedral de Nossa Senhora da Conceição. Uma pedinte, sentada no meio-fio com uma minúscula criança pelada no colo, fixa o olhar nos meus olhos. Eu me demoro um pouco mais a mirá-la, um milésimo de segundo de hesitação, o que é suficiente para ela captar imediatamente a falha e passar a implorar em voz mais alta. Há muito não dou esmolas, um velho hábito oriundo do passado socialista, quando considerávamos esse ato um estímulo à inação e à subserviência. Desvio imediatamente o olhar, me recomponho e sigo em frente.

Poluição visual, sujeira, lixo pelas ruas. Fezes de animais, fezes humanas. Uma sensação constante de alerta. Como qualquer cidade brasileira de maior porte, Manaus é uma cidade perigosa. Por isso caminho armando-me das poucas e frágeis estratégias que conheço desde sempre, ou pelo menos desde que comecei a caminhar com minha mãe pelo centro de Belo Horizonte. Evito o contato visual, que estimula a aproximação indesejada. Passo sem parar pelas intermináveis ofertas de celulares, tratamento dentário, roupas e outros, gritadas por homens e mulheres jovens em cada esquina. Afivelo a alça do peitoral da mochila, o que dificultaria a ação de alguém que tentasse tirá-la de mim. Quando vou consultar o mapa ou o relógio no celular, faço-o num lugar menos exposto, como uma porta de loja ou encostado numa parede, parcialmente protegido do fluxo humano.

Assim que entro no excelente Museu da Cidade de Manaus, pouco depois de percorrer a curta Rua Bernardo Melo, a primeira rua da cidade, me dou conta de que a minha programação foi completamente por água abaixo. O museu, que tem apenas um ano de existência, exibe exposições variadas, todas elas muito interessantes, tais como artefatos arqueológicos encontrados no antigo território da cidade, cartografia antiga e moderna a mostrar o paulatino avanço da urbe sobre a floresta e depoimentos de imigrantes estrangeiros e de outros estados do Brasil que se radicaram em Manaus. Concluo que, ainda que suja e perigosa, esta cidade é muito mais atraente do que me falaram e sem dúvida merece os quatro dias que tinha reservado para ela. Constato então o engano não só dos meus informantes, mas de um sem-número de pacotes de viagem pela Amazônia, que tratam Manaus apenas como um ponto de passagem obrigatório nas conexões de voo.

Aqui o calor é uma condição inelutável. Mesmo num dia um pouco nublado, em que o sol não banha completamente a cidade, como o faz comumente, o calor está presente. É provável que seja ainda mais intenso em razão da umidade, que agarra aos poucos o corpo e o imerge num banho de suor que me escorre pelas costas e pelo rosto, vindo do alto da cabeça sem cabelos.

Essa condição térmica entorpece os corpos. No Museu da Cidade de Manaus abro equivocadamente uma porta e dou com um dos estagiários da instituição a dormir sob o chão de madeira. Na Biblioteca Pública do Amazonas um homem dorme placidamente numa poltrona, abrigado do calor no salão climatizado, enquanto dois funcionários cochilam sentados em poltronas semelhantes, na área externa, atrás de uma exposição de pinturas de índios. Por vezes, nessa caminhada solo, o meu pensamento se fixa numa única e desejada ideia: o quarto de hotel, com sua cama coberta por um lençol branco, e o ar condicionado ligado.

Visito ainda diversos outros lugares de interesse na cidade. No Palacete Provincial a exposição sobre o trabalho do cinegrafista e fotógrafo Silvino Santos me permite cotejar o cotidiano de uma expedição pela Amazônia de um século atrás com a realidade que os visitantes modernos encontram na região. Esse explorador português, a propósito, é o autor do clássico documentário em preto e branco sobre a Amazônia, intitulado No Paiz das Amazonas (1921). Assisto a duas apresentações no magnífico Teatro Amazonas. A primeira é um concerto, uma gentil dica de uma das colegas da viagem às Serras de Tuparaquara. A segunda é uma apresentação de uma banda de jazz local, a Amazonas Jazz Band. No Museu Eduardo Ribeiro aprendo, algo surpreso, que esse governante local mandou aterrar, no final do século XIX, muitos dos igarapés que corriam pelo território manauense, de forma a tornar a cidade mais plana. Por isso hoje sob muitas avenidas ainda corre alguma água, oriunda desses antigos córregos, para sempre destruídos.

O assim chamado “Museu do Índio” mereceria um estudo e, mais que isso, uma intervenção corretiva. Trata-se de um ajuntamento de artefatos da cultura indígena, reunidos em seis salas anexas a uma igreja mantida pelos salesianos, localizada numa parte pobre e degradada do centro da cidade. Aqui as peças foram dispostas em velhas estantes, com identificação sumária, sem qualquer alusão aos povos que as fabricaram, local onde foram encontradas ou data provável de confecção. Nas paredes há pinturas com reproduções estilizadas e folclorizadas de elementos da natureza e da vida indígena. A última sala é ainda mais canhestra: nela foram dispostos instrumentos médicos utilizados pelos salesianos no tratamento dos problemas de saúde dos índios. No alto, uma grande representação esquemática do curso do Rio Negro. Ao contrário da grande maioria dos museus manauaras, e inclusive do próprio Teatro Amazonas, onde se pode assistir gratuitamente aos concertos, a entrada no “Museu do Índio” é paga.

No último dia na cidade engajo numa excursão convencional, cujo barco desce o Rio Negro na direção de Belém. O objetivo final é o encontro das águas do Negro com o Solimões, um espetáculo da natureza que muitos admiram. Ainda no saguão do hotel, cumprimentara o casal que seria a minha companhia nesse dia. A princípio a mulher me olha com certa desconfiança. Aos poucos vamos nos aproximando. São curitibanos; ela tem 77 anos e ele inacreditáveis 89. Fazem aquela que provavelmente será uma das últimas viagens das suas vidas – pelo menos para ele. Admiro a forma carinhosa com que se tratam – “obrigado, bem”, “descupe, bem” –, que difere da grande maioria dos casais que estão juntos há muitos anos. Almoçamos na mesma mesa, na parada no restaurante flutuante. “O senhor não aparenta a idade que tem”, afirmo a ele. “Mas você não notou a minha dificuldade de andar?”, devolve, com sinceridade. De fato, é tão lento no andar que algumas vezes chego a cogitar se não necessitaria de uma cadeira de rodas. “Mas a sua mente está muito bem. Isso é o mais importante”, concluo.

A mulher aportara em Manaus há 55 anos, numa viagem de navio pela costa brasileira, segundo me conta. É uma enormidade de tempo. Debato comigo mesmo: “como será voltar a um lugar que se viu há mais de meio século? O que terá restado de reminiscências? A cidade tornou-se praticamente outra. A visitante também...”. Cortesmente digo a ela: “Mas então a senhora era uma adolescente”. Ela sorri, satisfeita com o elogio, e responde: “Nem tanto. Já era uma jovem de vinte e poucos anos”. E me declara a sua idade.

Chegamos então ao celebrado encontro das águas. E é lá, graças às explicações do guia da excursão, que compreendo mais um pouco da hidrografia amazônica. O Amazonas é o maior rio do mundo em volume e extensão. São quase 7.000 quilômetros percorridos desde a Cordilheira dos Andes até a costa atlântica dos estados brasileiros do Amapá e Pará, onde se forma o Grande Delta. Recebe vários nomes da nascente até entrar em território brasileiro. A partir da cidade brasileira de Tabatinga, localizada na fronteira com o Peru, o rio toma o nome de Solimões, assim seguindo até o encontro com o Rio Negro, em Manaus. A partir daí até a foz, assume o nome de Amazonas. Recebe a contribuição de aproximadamente 1.100 afluentes, entre os quais os rios Madeira, Negro e Tapajós. “Solimões”, portanto, que alguns tomam como um rio, é nada mais do que o nome dado ao Amazonas no seu trecho entre a fronteira e Manaus.

Em 1500, indicam os estudos de história indígena, a várzea amazônica, isto é, as terras baixas percorridas por essa extensa rede hidrográfica, teria uma densidade demográfica próxima de 15 habitantes por quilômetro quadrado. Na mesma altura estima-se que a Península Ibérica tivesse 17 habitantes por quilômetro quadrado. A Amazônia, portanto, rivalizava em densidade demográfica com uma das regiões mais povoadas do mundo ocidental. Cristóval de Acuña, escrevendo em 1641, afirma que as terras de dentro (isto é, as terras amazônicas) eram tão populosas que “se atirarmos uma agulha para cima ela irá cair fatalmente na cabeça de um índio”.

Manaus, a capital não só do estado do Amazonas, mas de toda a Amazônia, parece ter esquecido esse antigo esplendor. Fora de lugares especiais, como o Musa, o Museu da Cidade e até mesmo o Museu do Índio, a cidade parece inteiramente desconectada do passado indígena da região da qual é o centro. A floresta e seus povos são apenas um obstáculo, sobre os quais se avança desde a fundação dessa metrópole de mais de 2 milhões de pessoas. Por isso percorrer as sujas e movimentadas ruas de Manaus é também um exercício de esquecimento e apagamento do passado.


Lugares que visitei em Manaus (pela ordem cronológica de visitação):


Teatro Amazonas: trata-se da edificação histórica mais famosa da cidade. O exterior e interior são belíssimos. Assisti a dois concertos gratuitos.

Tambaqui de Banda: restaurante com ótimos pratos ao lado do Teatro Amazonas

Museu da Amazônia/Jardim Botânico (Musa): um dos pontos altos da cidade

Mercado Municipal

Porto de Manaus

Banca do Largo: quiosque-livraria no Largo São Sebastião, ao lado do Teatro Amazonas.

Rua Bernardo Melo: primeira rua de Manaus. Algumas edificações antigas de interesse

Museu da Cidade de Manaus: novo, moderno e outro dos pontos altos da cidade

Catedral Nossa Senhora da Conceição

Biblioteca Pública do Estado do Amazonas

Palacete Provincial: abriga cinco espaços distintos, em dois andares. Os meus pontos altos foram a exposição fotográfica de Silvino Santos e a Pinacoteca

Museu Casa Eduardo Ribeiro

Da Terra Peixaria: excelente restaurante de comida regional situado num lugar inusitado, vizinho a um igarapé poluído, com vista para uma área favelizada da cidade

Tribunal de Justiça: visitas guiadas mostram a arquitetura interna em estilos neoclássico, barroco e art nouveau

Palácio Rio Negro: coleção de mobiliário escuro e pesado. Localizado numa área popular do centro da cidade, fora do circuito histórico

Parque Senador Jeferson Perez: pequeno e inexpressivo. Uma tentativa de melhorar a área por onde correm os igarapés poluídos

Museu do Índio

Ponte sobre o Rio Negro: enorme e muito bonita

Bosque da Ciência/Inpa: um passeio por vários espaços em que a natureza é explicada, na perspectiva da região amazônica.

Praia da Ponta Negra: nesse bairro rico de Manaus localiza-se uma agradável praia do Rio Negro. O local foi adaptado para o lazer e a prática de esportes, com calçadão, anfiteatro,  parque infantil, arena de skatismo e barraquinhas de comidas industriais e típicas.

Bar do Armando: localizado praticamente ao lado do Teatro Amazonas, esse bar entre popular e underground oferece boa música e ambiente descontraído. Um dos lugares descolados que conheci em Manaus, graças à dica do catarinense Roberto, companheiro da viagem para o Jaú.






















Comentários

  1. Tb achei Manaus uma cidade cheia de carisma😊

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  2. Babyliss Pro Titanium Flat Iron - Titanium Art
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