Relatos amazônicos 1 - Rumo à Amazônia

Agarro rapidamente as duas mochilas e pego o elevador que me leva do 10o. andar até a portaria do prédio. Lá embaixo, olho o relógio do celular e concluo que será impossível chegar a tempo ao aeroporto indo de ônibus. Cancelo então o táxi que me levaria até a parada do ônibus e decido fazer todo o trajeto até o aeroporto em veículo de aplicativo.

O carro chega rapidamente e já nas primeiras palavras trocadas com o motorista noto um sutil sotaque do norte ou nordeste do país. Tênue, porém identificável. Ele menciona algo sobre o período em que mora em Belo Horizonte e então pergunto de onde vem. "Manaus", responde. Sorrio comigo mesmo. Por uma casualidade tivera que cancelar o primeiro veículo e pegar esse segundo, pagando uma viagem bem mais cara até o aeroporto. Mas valera a pena, pensei. Pois, afinal, quem imaginaria conhecer um motorista manauense numa manhã de sábado feriado em Belo Horizonte? Tratava-se da primeira pessoa de Manaus com quem eu conversava, e isso se dava exatamente quando estava para iniciar o meu périplo amazônico.

Ao longo do percurso de cerca de 40 minutos, João vai desfiando um pouco da história da sua vida. Mudara-se para Belo Horizonte porque a filha fora aprovada para ingressar no curso de Comunicação de uma universidade pública mineira. Era a filha do casamento atual, o último de uma série de nada menos que sete relações duradouras, perto das quais as minhas quatro pareciam uma ninharia. Já fora, nas suas palavras, "rico" por duas vezes e perdera tudo, pois se descasara deixando os bens para trás. Agora almejava levar do norte para Belo Horizonte uma farinha especial, que projetava distribuir em pequenos frascos, como brinde em eventos, reuniões, etc. Argumentei com ele que a crise econômica tornava qualquer investimento um risco, mas ele rebateu: "Esse negócio tem tudo para dar certo, já tenho até o desenho da marca na cabeça". "Um sonhador", pensei. No capítulo Amazônia, não se revelou uma grande fonte de informações. Jamais vira um índio, afirmou. A sua vida parecia ter se limitado a Manaus e às áreas próximas. Em dado momento revelou os 57 anos, a mesma idade que eu. Discretamente observei as marcas do tempo no seu rosto, as rugas no pescoço, os dentes desalinhados, o ar cansado. "Talvez eu não esteja ainda tão marcado", pensei, "um resultado de uma vida economicamente mais estável".

De Belo Horizonte segui para Belém e de lá para Santarém. Essa cidade paraense de 358 anos, uma das mais antigas da Amazônia, seria a minha porta de entrada para a região. Ao pousar no aeroporto, fui surpreendido com o extravio de uma das mochilas, a maior, que continha roupas e uma série de equipamentos necessários para a visita às comunidades indígenas. Essa mochila seria recuperada e devolvida a mim somente no dia seguinte.

No primeiro dia, enquanto passeava por Santarém, pensava esporadicamente na mochila extraviada, que, obviamente, não se sabia ainda se seria recuperada. Comumente essa é uma situação extremamente estressante para os viajantes. A perda de uma bagagem pode inviabilizar material ou emocionalmente uma viagem. Isso, todavia, não ocorreu comigo. O meu primeiro suporte foi rememorar uma prática do passado, que inaugurara na viagem de volta ao mundo com a antiga parceira, em 1998. Naquele tempo, como teríamos pela frente uma jornada muito longa, de oito meses, recorremos a uma estratégia de organização da bagagem. Na mochila cargueira, que era despachada no porão de aviões e ônibus, seguiam os itens que podemos denominar "importantes", tais como roupas, sleeping bags, calçados, artigos de higiene pessoal. Na segunda mochila, que carregávamos sempre conosco, jamais despachada, eram colocados câmera fotográfica, filmes fotográficos já utilizados (estávamos ainda na era da fotografia analógica), o laptop da época, cadernos de viagem, carteira. Eram os itens "muito importantes". E, por fim, numa pochete oculta internamente na cintura, iam o passaporte, a passagem aérea (que na época era somente impressa, sem versão digital), cartão bancário e dólares. Era o "indispensável". Nós dois sabíamos que a perda do que era importante seria lamentável, mas tudo o que continha a mochila cargueira poderia ser reposto no caminho. Se ficássemos sem o que era muito importante, seria muito pior: perderíamos preciosos registros fotográficos e notas de viagem, que continham a memória da nossa aventura. Mas ainda assim poderíamos prosseguir. Somente a perda do indispensável levaria ao cancelamento da viagem.

Raciocinando a partir desse exemplo longínquo, a minha situação presente em Santarém me parecia bastante tolerável. Decompunha mentalmente o conteúdo da mochila extraviada e nada que ela continha me parecia insubstituível. Reproduzira intuitivamente, na organização da bagagem, o mesmo método de 1998. Com certeza, portanto, seria possível permanecer em Santarém e dali seguir para Manaus, o meu próximo destino. Havia afirmado, no grupo Whatsapp de participantes da visita às comunidades indígenas, que sem a mochila essa fase da viagem estaria inviabilizada para mim. "Será mesmo?", pensava com os meus botões. Sabia que alguns itens, tais como o sleeping bag, seriam difíceis de substituir, mas mesmo nesse caso haveria formas de se contornar o problema.

A certa altura, notei que o problema deixara de me preocupar e passara a... me divertir. Pensava nele de forma intermitente enquanto caminhava pelo calçadão que percorre a orla de Santarém. A manhã se iniciara nublada, mas aos poucos o sol ganhou força e às 10 horas da manhã já banhava por inteiro a cidade e os rios. O rio Amazonas, barrento e mais distante, corre em perfeito paralelismo com o rio Tapajós, de cor clara e próximo da orla. É o chamado "encontro dos rios", uma das atrações da cidade. Aqui o visitante que vem do sul, pouco acostumado ao transporte fluvial, tem o primeiro contato com uma rede viária na qual a circulação pelos rios tem papel central. Embarcações de vários tipos, tamanhos e calados se espalham ao longo da orla. Daqui partem barcaças para lugares tão distantes quanto Manaus, que está a dois dias e 150 reais de viagem.

Estendi a caminhada pelo calçadão até onde pude, chegando até onde ele desaparece e se torna uma faixa de terra. No final desse longo trecho está o mercado pesqueiro da cidade, uma verdadeira festa em peixes frescos das mais diversas espécies.

Atendendo a outro hábito antigo, decidi voltar ao hotel por outro caminho, de forma a passar por lugares que não conhecia ainda. Seguindo no mesmo sentido do calçadão, mas em ruas internas, distantes da orla, cruza-se a zona central da cidade. Na manhã de domingo, as ruas estão vazias. Constato que, como já notara em outras cidades do interior do país, também aqui o esgoto corre a céu aberto, em valas abertas ao longo das calçadas. Esse parece ser um problema em toda o centro de Santarém.

De tarde, depois do almoço, a orla se esvazia de pessoas. Torna-se silenciosa; os poucos movimentos que se notam são o voo das aves e a mareta (onda de rio), que preguiçosamente traz o Tapajós até a margem arenosa. À noitinha, tudo se anima novamente. Barraquinhas de comidas e bebidas, mesas e cadeiras, música, transeuntes voltam a ocupar o calçadão de Santarém.



























Comentários

  1. Que lugar e que aventura interessantes! A narrativa nos provoca imensa vontade de conhecer de perto.

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  2. Quem diria?... Afinal também me vou adentrar um pouquinho pela Amazónia!... Faço votos que continues cada vez mais entusiasmado e inspirado nesse periplo e tenhas sempre tempo e garra para nos levares a viajar também um pouco contigo.

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  3. Gostei do relato cinematográfico e das fotos. Mais uma aventura sua por esse mundão. Você é importante para esse país. Acho bom rever seus planos futuros. Carinhos.

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