Relatos amazônicos 2 - Alter do Chão

"Estou sozinho", dispara o gatilho mental assim que abro os olhos na manhã do segundo dia em Santarém. Passo os próximos minutos apaziguando a mente, mantendo-a quieta, de forma a evitar que ela inicie uma produção de pensamentos que, bem sei eu, não levará a emoções agradáveis. Viajar sozinho é uma prática pouco comum e frequentemente encarada com receio pelas pessoas. E a mente sabe disso.

Uma vez, no norte da Índia, fui agarrado pelo pescoço pelo demônio da angústia de estar sozinho. Chegara a Rishikesh com meu filho e minha nora e os primeiros dias na cidade foram relativamente agradáveis. Passado esse primeiro período, eles rumaram para Goa, no longínquo sul do país, onde fariam um curso de yoga. E eu fiquei sozinho. A programação era que dali a um mês, encerrado o curso, voltaríamos a nos encontrar, para juntos seguirmos para o Nepal.

Tão logo eles partiram, a pouco e pouco, de forma sutil, o demônio passou a me rondar. As condições ambientais, sempre decisivas, não eram boas. Como de resto todo o país, a cidade é muito suja: lixo acumulado nas ruas, esgotos a céu aberto, animais soltos remexendo detritos. Também como em outras cidades indianas, há muita miséria, famílias inteiras de mendigos vivendo nas ruas.

Não havia lugares onde pudesse ir para relaxar e me exercitar. Não havia onde fazer uma caminhada ou corrida. Uma opção de escape seriam os inumeráveis templos, mas o que faria eu, um ocidental ateu, num templo hindu? Refugiava-me então no quarto do hotel. Passava horas a ler deitado na cama, enfiado no sleeping bag, pois estava frio. Sofrera uma perda muito grave dois anos antes e o luto insidiosamente retomava o controle sobre a minha mente e o meu corpo.

Na Índia os macacos são sagrados. Isso é, em princípio, nobre e louvável. Mas pode produzir efeitos indesejados. A cidade de Rishikesh é dividida em duas pelo rio Ganges, que, nas proximidades das suas nascentes himalainas, é um curso de água ainda limpo. Para cruzar de um lado para outro do rio, foram construídas estreitas pontes, por onde transitam pedestres, motociclistas e animais. É aí que entram os macacos. Como não se pode persegui-los, postam-se livremente dos dois lados da ponte e... atacam os pertences de quem passa, ávidos por comida. Há relatos de celulares agarrados dessa forma, sendo que, assim que percebeu que o objeto não lhe interessava, o animal o jogou no rio. São espertos e agressivos.

Num daqueles dias de angústia e solidão, atravessava uma das pontes em direção ao hotel, carregando uma sacola de papel com alimentos que comprara do outro lado do rio. Seguia, como vinha acontecendo naqueles dias, distraidamente imerso em maus pensamentos e emoções descontroladas. Foi então que um macaco repentinamente saltou sobre o farnel e com as unhas afiadas agarrou-o e levou consigo. Aquele foi para mim o derradeiro sinal, uma espécie de presságio. Cheguei ao hotel, avisei ao meu filho que estava cancelando toda a programação posterior, troquei a passagem aérea, fiz as malas e voltei ao Brasil.

Lembrava-me desse curioso caso enquanto organizava a mochila pequena, no pequeno e confortável quarto de hotel em Santarém. Eu aprendera muito com a malograda viagem ao norte da Índia. Uma viagem solo deve incluir a prática de exercícios físicos, especialmente os aeróbicos: caminhada em ritmo rápido, corrida, subir e descer escadas. Independentemente do clima, sobre o qual obviamente não temos controle, é importante que se esteja num lugar agradável, com roupas adequadas à temperatura e boas condições para atividades de lazer. Uma programação razoável, flexível e atraente é um fator decisivo.

Encerrando as minhas elucubrações matinais, enquanto aguardava o ônibus que me levaria a Alter do Chão, eu concluía que estava muito bem nesta primeira fase da jornada pela Amazônia. Estava numa região bonita, vibrante e desejada; o sol brilhava o dia todo e tinha ricas atividades programadas para as próximas semanas. As atividades aeróbicas de que tanto gosto podiam ser facilmente realizadas no calçadão ou mesmo numa escadaria pública que descobri nas proximidades do hotel.

O ônibus percorre boa parte do centro de Santarém e depois segue por uma estrada asfaltada, cortando áreas rurais. São cerca de 40 minutos de deslocamento. Logo ao descer em Alter do Chão, chego à pracinha central, que felizmente provê boa sombra de árvores, e avisto em frente a Ilha do Amor. Trata-se de uma grande língua de areia que fica exposta nesta época de vazante dos rios. Sobre esse terreno foram instaladas dezenas de barraquinhas de comidas e bebidas. Para se chegar até a ilha faz-se a curta travessia em embarcações denominadas catraias.

Caminho um pouco pela curta orla central, peço informações a uma motoqueira - "não sei se posso ajudar, eu também não sou daqui", me responde -, chego até um pequeno posto de informações turísticas, que é também um ancoradouro. Volto à pracinha, almoço. O que fazer? A verdade é que, nas primeiras horas em Alter do Chão, não dimensionara ainda a importância estética e ambiental do lugar.

É então, logo depois do almoço, que alguém me dá uma sugestão valiosa. Há uma boa opção de caminhada e paisagens muito bonitas do outro lado do rio, depois da Ilha do Amor. Atravesso então numa das catraias e vou caminhando pela areia quente, passando por barracas em atividade e, depois, por várias barracas vazias. À medida que avanço rareiam as pessoas, até que não se vê ninguém.

De longe vê-se o que os locais chamam "Serra Piroca", na realidade um cerro que se destaca em meio à planura da região. Inicio a trilha em direção a esse ponto, cortando a mata e depois subindo em zigue-zague em direção ao topo, isto é, à Serra Piroca. Quando chego ao cume, tenho o primeiro impacto. Giro o corpo em 360 graus e de todos os lados avisto o rio. Ele é enorme, oceânico e, dada essa grandeza, não se pode entendê-lo como um curso de água linear, bem desenhado na paisagem. Banha toda a região, como se eu estivesse de fato numa porção de terra no meio do oceano.

Desço a serra e banho-me nas águas mornas e calmas do Tapajós. Quase não se nota movimento das águas. Plâncton verde, peixinhos verdes (terão adquirido essa cor em simbiose com o plâncton?). Estou numa espécie de baía e posso ver ao longe, claramente, a área central de Alter do Chão; as casas, o cais, a Ilha do Amor. Alguns cariocas passam, o sotaque inconfundível. Comentam entre si: "é muito bonito, muito bonito". E não se cansam de repetir isso.

Esse é o segundo impacto da paisagem. Nada pode me convencer de que não estou numa baía marítima. O volume e a extensão das águas são impressionantes. Refinando uma aquisição que se iniciara em Santarém, aos poucos vou tendo a real dimensão do que significam os rios da Amazônia. Retorno a Santarém no final do dia, buscando processar, por meio da interlocução interna, o que tinha visto. Uma viagem solo.












Comentários

  1. Que experiência incrível! Lindo mesmo.

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  2. Esse será um outro livro, não é?
    Que maravilha de relato! É um afago para a minha cabeça carente de boniteza.

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